Baptista-Bastos

Um homem maior do que o seu tempo

baptistabastosNunca houve limites para a paixão deste homem pelo saber. E nada limitou o seu apreço pela aventura espiritual dos outros. Sempre reconheceu todo o esforço criador que tenta sobrelevar o irracionalismo da bestialidade, a fim de descobrir a grandeza que se oculta na condição humana. Nunca desistiu dessa obstinada procura. Nunca abandonou a curiosidade activa, certamente a consistência do seu carácter, da sua nobreza – e da sua luminosa humildade.

Não conheço ninguém como Óscar Lopes. Não conheço outro intelectual português que, nas condições mais dramáticas, enfrentando as adversidades mais dolorosas tenha feito a transposição dos limites com a amplitude como ele o faz. O exercício didáctico e a prática pedagógica associados para a descodificação do que se pretende ocultar na cultura.

Óscar Lopes ensinou-nos que a cultura é uma actividade de relação, e que toda a actividade cultural possui correspondências discretas ou declaradas com a política. As contradições éticas sempre existiram, no campo complexo e diversificado da estética. De Aristóteles a Lukács o sentido da arte é uma bifurcação mil vezes multiplicada. Quando Óscar Lopes ensaia sobre Joaquim Paço d`Arcos mais não faz do que tentar apreender a incerteza na relação entre os fins e os meios. Marx fizera-o ao escrever sobre Balzac e Zola, como o próprio Lukács, procurando, no aparente antagonismo entre Kafka e Thomas Mann, o cerne de uma questão cuja imprevisibilidade é total – porque insolúvel.

Encontramo-nos num estádio de subdesenvolvimento ético, cuja natureza talvez se encontre na ruptura dramática do sistema de mundo que nos foi proposto – e no programa de vida que se nos propõe. Perante os desenvolvimentos científicos, Óscar Lopes previu a emergência de novos niilismos, considerando que teologias desviadas e pervertidas iriam reconhecer novos valores. E fê-lo através de reflexões sobre livros, autores, música, estruturas matemáticas, pintura, teatro, filosofia, ensaística.

Pessoalmente, conheci este pequeno homem de grande estatura em 1963. Nos Fenianos, faz uma crítica admirável, exactamente por ser crítica, ao meu primeiro romance, O Secreto Adeus. Sala apinhada, com pides à mistura. Discreteou, largamente, acerca da sociedade em que vivíamos, afirmando que aquele meu romance se inseria num quadro estético e ético simultaneamente correspondente e antagónico do neo-realismo. Abriu-me as portas para outros entendimentos da arte literária, ajudando-me a quebrar mitos e a afastar-me de situações arquétipas.

Com uma generosidade sem limites, albergou-me em sua casa, e conversou comigo até tarde. Eu tinha 29 anos, era um moço de múltiplos imaginários e dilatadas verdades. Enfim, um soberbo tolo. Óscar foi-me alertando, com paciência, grandeza e modéstia, para o imediatamente dizível e visível, acentuando a importância de se transcender razão e religião. Os seus ensaios comportam essas advertências, e creio estar aí a essência fundamental da sua modernidade.

Pelos anos fora encontrámo-nos amiudadas vezes. O carácter das nossas comuns opções ideológicas levou-nos a caminhar pelos mesmos locais e por idênticas veredas. E foi sempre um fascínio luminoso escutá-lo, vê-lo, lê-lo. O trabalho intelectual deste homem é incomum - como ele próprio o é. Nunca se escusou a participar, a interferir, a estar presente: pela palavra dita e pela palavra escrita; pelo livro, na Imprensa quando lhe era possível e permitido; nos comícios, nas sessões literárias, em livrarias, em clubes, em tudo o que possibilitasse discorrer acerca do homem e dos seus labirintos.

Houve um ano em que um grupo de escritores portugueses foi convidado a participar num debate, com os seus camaradas galegos, no Departamento Fonsecas da Universidade de Santiago de Compostela. Por vezes, as sessões eram extremamente maçadoras e alguns de nós descartavam-se. Óscar Lopes – nunca. A um canto, tomando notas como o mais vulgar dos alunos, o grande historiador de cultura, o excepcional ensaísta e crítico assistia, sempre curioso, sempre interessado, a tudo o que se dizia.

Certo dia, os galegos decidiram homenagear o poeta Manuel Maria, tido como voz exemplar da Galiza. Óscar continuava a tomar notas, manifestamente interessado pelo que acontecia. Foi então que não resisti: ergui-me e, com a voz mais alta que pude, disse: “Manuel Maria é um grande poeta e é justa a homenagem a que gostosamente me associo. Mas quero chamar a atenção da assembleia para aquele canto obscuro, ali, onde está uma das grandes figuras culturais da Europa do nosso tempo, o português Óscar Lopes”.

Todos os presentes, às dezenas, se levantaram como um só. Voltaram-se para o local onde Óscar Lopes estava e aplaudiram-no, longamente, calorosamente, e ele atrapalhadíssimo, sem saber onde se meter, olhava, olhava procurando uma porta, uma saída para escapar, modesto, grandioso, espantado e sublime na simplicidade. E todos, galegos e portugueses, emocionadíssimos, lágrimas nos olhos, coração apertado; ele envolvido no calor da admiração e da amizade mas, também, na atrapalhação, no embaraço e no assombro.

Não tem sido bem tratado, este homem que deu à pátria ferramentas intelectuais, propostas de reflexão, anúncios de estudo, incentivos para o combate, para a resistência, para a tolerância – a fim de a pátria manter a fisionomia moral e ética. Eu devo-lhe atenções desvanecedoras, críticas serenas, acenos de cumplicidade, num diálogo nunca interrompido, inesgotável de revelações e de conceitos de responsabilidade – que constituem a dimensão de um homem cuja estatura é absolutamente rara.

Cabe-nos resgatar a afronta do esquecimento. Cumpre-nos abalar a indiferença. Compete-nos impedir que os acasos do momento não sejam, apenas, o reverso do nosso pesar – e condenemo-los com a indignação exigida pelos escândalos do silêncio.

Lisboa, 14 de Setembro 2007