Óscar Lopes – um testemunho
Definição fundamental: um homem de carácter
Em começo de 1942 fui contratado como professor extraordinário pela Faculdade de Letras de Lisboa, secção de História. Encarregado da regência de várias cadeiras fundamentais, parece que o meu ensino ia bulindo com as velharias instaladas, havia quem descortinasse propósitos políticos, meninas católicas bem-comportadas não suportavam a história das religiões feita com igual respeito por todas as crenças (de antigos egípcios, súmero-acádios, gregos e romanos...). Alertado, o Ministério advertia a Faculdade que se desembaraçasse de tal “infiltração” heterodoxa e o solícito Conselho Escolar, só com o voto contra de Manuel heleno, recusou renovar-me o contrato.
Algum tempo depois, a Secção de Filologia Clássica (ou a de Românicas, não me lembro), dirigiu convite a Óscar Lopes. O convidado responsável respondeu simplesmente: “Em Faculdade onde não pode estar Magalhães Godinho, eu também não posso estar”.
Em posteriores demissões políticas que me foram impostas, nenhum professor universitário teve tal gesto de solidariedade (mesmo entre os que estavam comprometidos).
Estive a reler as cartas que Óscar Lopes me escreveu, desde o início da sua carreira docente (1941 Vila Real), sobretudo durante os anos 40, e, em menos número, de anos posteriores. De algumas dir-se-ia serem esboços de ensaios. Penso que seria útil publicá-las, para seguirmos a génese do seu pensamento e dos caminhos que vai trilhar.
Conhecêramo-nos na Faculdade de Letras de Lisboa, nesse casarão tão pouco atraente por baixo da Academia das Ciências (posição que diz muito). Um corpo docente medíocre (e é favor), onde um ou outro competente não se interessava e procurava passar despercebido, se acaso no seu íntimo albergava ideias “incorrectas”. Mas, incólumes a esse ambiente, além de ambos antifascistas (designação caída em desuso, et pour cause), o que franqueava logo o diálogo, andávamos à descoberta desse admirável mundo novo para lá das fronteiras salazaristas. Arranjávamos livros, emprestávamo-los um ao outro (emprestei-lhe, por exemplo, o Husserl, mais tarde o Tarski), discutíamos linguística e lógica moderna (assim se chamava então, mau grado vir do século XIX), filosofia e política, história e a sua teoria. Eu estava empenhado em investigações de lógica relacional, esforçava-me por conhecer a matemática e a física, porque nelas alicerçava em boa parte a teoria do conhecimento e/ou epistemologia (ainda não havia as ciências cognitivas e as ciências da comunicação). Óscar lopes queria desenvencilhar-se dos enredos da linguística, construindo uma teoria matemática relacional que correspondesse às especialidades da linguagem. Será a sua preocupação dominante, até assentar outro pilar na história da literatura. Mas, talvez por inspiração de certa ideologia, pretendia também integrar uma sociologia da literatura e dos fenómenos linguísticos. Tal ânsia de alargar horizontes levou-o a ir tirar Histórico-Filosóficas a Coimbra, cuja Universidade lhe valeu certeiras críticas – não admiraria, sabendo-se quam andava por lá a leccionar História, debitando as listas dos imperadores romanos ou dos papas. É certo que havia Sílvio de Lima com a sua finura e a sua cultura aliciante, Joaquim de Carvalho com a sua erudição; não bastava, claro.
A leitura das cartas fez-me sentir saudades desses tempos de alvorada e camaradagem, em que tanto nos enriquecíamos no convívio mútuo, tendo no fundo o mesmo ideal mas divergindo nos itinerários para lá chagar. Diz Óscar Lopes numa das suas cartas (20 Nov. 1997): “Mal nos temos encontrado, e todavia é difícil encontrar hoje duas pessoas com as nossas afinidades.” Sem dúvida. Desencantado, porém, da orientação da oposição, resolvi-me (1947) a optar por construir uma carreira científica e cultural, que me resolvesse os problemas materiais (prementes sob tão benigno regime) e me desse um dia a possibilidade de ser útil ao meu país ou de viver numa outra pátria. A distância geográfica separou-nos (duas emigrações, não exílios), e, as minhas responsabilidades perante quem tão bem me acolhera não me deixaram muitos tempos livres – compensado pelo convívio com Lucien Febvre, Fernand Braudel, Marcel Bataillon, Jean Meuvret, Maurice Lombard, Albert Silbert, tanto mais.
“As nossas trajectórias são diferentes”, sublinha Óscar lopes, que esclarece manter-se fiel à sua ideologia, “hoje muito mais à vontade, porque não tenho aliados comprometidos em malfeitorias”; não consegue, porém, explicar bem tal apego, a não ser psicanaliticamente (carta de 20 Nov. 1997). Eu diria antes que, por mim, procurarei manter a coerência de um ideário e de directrizes de vida através das cambalhotas do mundo, sem cair no engodo de cartilhas de pensamento único, antigas ou actuais, autondenominadas de “ciências”, nem aceitar a inevitabilidade da exclusão de caminhos inovadores rumo à democracia plena. Ao longo das nossas trajectórias abrimo-nos a problemáticas novas, forjamos novas ideias, os horizontes ampliam-se, escoramos melhor as explicações, corrigimos erros que sempre se cometem, melhoramos a maneira de escrever, mudamos certos rumos. Com Óscar Lopes foi também assim, com certeza. As suas concepções da lógica e da linguística foram-se tornando mais complexas e pertinentes, a sua reflexão filosófica aprofundou-se, de certo abandonou alguns simplismos. Porque, as suas cartas mostram-no, era alguém quase viciado em perguntar (não creio que deixasse subsistir ilhas de inquestionável), ansioso por conhecer mais e mais, preocupado com aperfeiçoar. Apercebeu-se bem das especificidades do literário e do artístico, e daí as restrições que levantou ao neo-realismo. Insurgiu-se contra a incompreensão a que os neo-realistas votaram a obra tão completa de Irene Lisboa, mostrou-se desagradado com as críticas literárias de Mário Dionísio e outros desse grupo, sublinhando que os homens da Presença, embora intuicionistas e sob influências pouco racionalistas, tinham mais ideias. A sua construção linguística, com a ferramenta da lógica matemática, é estritamente formalizadora – directriz que eu achava necessária mas redutora, entendendo que a linguagem tem de ser elucidada também pela sociologia e pela psicologia (pela história).
No anos 40 a nossa discordância era total quanto ao materialismo dialéctico. Sem dúvida Óscar Lopes admitia que ia mais longe com os “idealistas” como Léon Brunschvicg do que com os “realistas críticos” como Russell; e considerava a validade da filosofia kantiana ou da brunschvicguiana mas em planos diferentes do da validade da filosofia de Marx (ainda não se conheciam os primeiros escritos capitais) e de Lenine (em meu entender erradamente postos em carruagens do mesmo comboio). Seduzia-o a construção spinozista, na verdade a única metafísica compatível com a ciência (fundamental e noção de imanência). A leitura de Materialismo e Empiriocriticismo deixara-me na convicção de que muito pouco valia na reflexão epistemológica. A famosa dialéctica, para mais divulgada na versão staliniana, carecia de qualquer interesse. Além de que na URSS se ignorava deliberadamente a lógica “moderna”, Boole e a álgebra da lógica, Peano e Burali-Forte, Bertrand Russell, para não falar de lógicos mais recentes, o que fortemente condicionou o atraso na informática e no pensamento filosófico em geral. Decerto, Óscar Lopes chega a falar na “vacuidade” do materialismo dialéctico, e não pode deixar de reconhecer a sua debilidade interpretativa, conquanto o considere válido numa filosofia para as massas (que deveria ser a mesma das elites). Não será ousado apostar que o nosso Autor se soube desembaraçar de tal embrulhada, que de nada servia o seu ideário e o embaraçava nas suas investigações.
A correspondência de Óscar Lopes, sempre com notas da vida familiar e do convívio com os amigos, demonstra bem quão difícil era um intelectual independente manter-se sob o regime totalitário. Como me sucedia também a mim, e Óscar Lopes não deixava de consagrar recensões críticas aos meus trabalhos, para que eu continuasse a “existir” no abafado meio português. Nem sempre com êxito: na secção “A crítica do livro” no Comércio do Porto, publicou no dia 14 de Agosto de 1962 um artigo sobre Os Descobrimentos Portugueses de Jaime Cortesão, mas a Segunda parte, que era consagrada ao meu livro A Economia dos Descobrimentos Henriquinos, foi inteiramente cortada pela Censura. Na carta a acompanhar o recorte, escrevia então “Não se pode falar no V. Magalhães Godinho”. O fascismo português caracterizou-se pela mesquinhez. Mas a Óscar Lopes aconteceu pior: proibido de ensinar literatura portuguesa desde 1955, preso em condições penosas, levado a julgamento, embora por fim absolvido pelo plenário e reintegrado.
Foi preciso o 25 de Abril para ir ocupar na Universidade o lugar que lhe competia – sem desmerecer do seu trabalho no ensino liceal, e, para o público em geral, da História da Literatura Portuguesa, em colaboração com António José Saraiva, uma das obras indispensáveis da nossa cultura no século XX. A sua contribuição para a discussão do chamado “Acordo ortográfico” (1987-1988) foi lúcida e capital, e muito utilizada pelos outros intervenientes. É claro que o impressionante acervo então reunido não convenceu quem julga que pode mandar nestas cousas, quando a língua é património colectivo e de séculos, pre-existe à soberania, e como tal não pode ser objecto de normatividade por qualquer instituição (assim o reconheceu o Parlamento francês, mais avisado).
Os estudos de literatura de Óscar Lopes colam-se aos textos, surpreendem os seus ritmos, descobrem os estratos que os compõem, apreendem os múltiplos significados das suas partes e do seu todo, as incoerências ou coesões, levam-nos a ouvir a sua música secreta. E a análise percorre o nível das frases, destaca as palavras e a sua carga de sons, imagens, emoções, intencionalidades. Por tudo isso o seu trabalho abre-nos a melhor fruição estética das obras e a melhor compreensão do sentido que carreiam. Fazem-nos desejar ler com gosto, como é bom que igualmente aconteça com a música – domínio de predilecção de Óscar Lopes, o que tanto contribui para a sua penetrante crítica literária – e com o mundo das formas visuais. Também aqui os que mandam nestas cousas não perceberam, não percebem o papel da literatura (e das outras artes) na construção da personalidade, na formação da cidadania, na tomada de consciência de que dispomos de um património multissecular que é a melhor base para nos situarmos neste mundo em desvairada mudança e estímulo para a tessitura de laços de uma comunidade viva.
Balanço das nossas trajectórias? O ideário da democracia plena esfrangalhado, contentamo-nos com votantes em vez de cidadãos, apaga-se a noção decisiva de bem público, de serviço público, de função pública, tende-se a privatizar ao máximo e a tornar o Estado mero instrumento do primado dos interesses privados, confunde-se democracia com economia de mercado, que aliás já não existe – tudo é decidido por uns tantos complexos globais-mundiais, que controlam miríades de soi-disant empresas, por uma gestão que visa a inovação permanente, donde resultam a dispensa de mão-de-obra (considerada racionalização) e a obsolência de produtos e formas de produção e circulação geradora de lixo em vertiginosa amontoação. Continentes morrem de fome, doença, violência, enquanto um estrato superior, mais largo do que na antiga sociedade piramidal, acumula somas fabulosas, e entre uns e outros camadas médias de operários de colarinho branco, quadros, profissões terciárias vivem incerteza e razoável bem-estar. Um mundo em que impera a tecnologia sofisticada de incrível eficácia, mas consternado pelo medo do terrorismo, das drogas, de juventudes sem norte, de todas as confusões de valores, ávido de direitos mas sem consciência de deveres.
Restringindo aos nossos campos de acção. Nas escolas abandonou-se a cultura humanística, a literatura enfada, só se lê por obrigação, escreve-se aos pontapés à gramática, fala-se por estereótipos e bordões. Fernão Lopes, Gil Vicente, Mendes Pinto, Tolentino, Garrett, e, por aqui fora, não são presenças vivas. Mas também pode questionar-se se há cultura científica, esmagados que estamos pelo saber-fazer, pelo teclar segundo programas prefabricados, e por outros lado submersos tanta vez por crendices – abusões e fábulas de prósperas seitas. As ciências humanas (sociais) actuantes nos anos 50, 60 e 70 do século passado, frangmentaram-se, cada qual segue seu rumo, preocupadas predominantemente pela acção prática ao serviço de recompensadores interesses; acanhando-se ao âmbito micro, receosas de voos mais largos – encimadas que estão por uma concepção que se julga a única e verdadeira, e repete obsoletas formulações. Deitou-se pela borda fora a história, que é todavia maneira indispensável de pensar todos os problemas que ao homem e aos homens dizem respeito, e sem atender que é à História que cabe traçar as trave-mestras para organizar a visão macro de síntese das contribuições das diferentes ciências humanas. O passado deixou de importar, o presente vive-se pragmaticamente (como sói dizer-se), e para o futuro deixamo-nos arrastar no movimento caótico sem ninguém ao leme.
O balanço das nossas trajectórias termina em interrogações. Esperemos que contribuam para lhes encontrar resposta, quando se voltar a querer abrir o leque dos futuros possíveis, e, para se consciencializarem, os homens tiverem em conta o legado recebido e pela história – investigação cientificamente conduzida – cingirem melhor a sua condição.
(Setembro, 2007)