Para o Óscar, um abraço
Embora conterrâneos, nascidos na mesma cidade – então vila – de Matosinhos, o meu convívio com Óscar Lopes só verdadeiramente se iniciou nos anos 50, quando já ambos vivíamos na cidade do Porto. Foi, primeiro, as críticas que fez, nesses anos, às minhas primícias poéticas, quando exercia a crítica semanal na saudosa página de letras do jornal O Comércio do Porto, página onde foi mestre de críticos durante anos, não tendo sequer interrompido esse “magistério” quando proibido pela PIDE de escrever naquele jornal.
O truque foi assinar os artigos com outra parte do seu nome, e assim nasceu o crítico Luso do Carmo, subterfúgio que não enganava ninguém pois que aparecia a justificar um estilo por demais conhecido. Era já o espírito inquieto e agudo que falava de cátedra dos mais variados assuntos, embora de cátedra não dispusesse, mantido pelas autoridades da época como modesto professor de grego de alunos dos primeiros anos do liceu, situação que não se alterou muito até à liberdade democrática que o 25 de Abril inaugurou. Mas o nosso verdadeiro convívio, que superava a amizade e a admiração, veio com o trabalho constante – no mínimo semanal – que tivemos de desenvolver quando Óscar Lopes presidiu à Delegação do Norte da Sociedade Portuguesa de Escritores, dirigindo um pequeno grupo a que me honro de ter pertencido. Os cerca de oitenta colóquios com escritores, realizados durante cerca de cinco anos, primeiro na Associação dos Jornalistas e Homens de Letras, mais tarde no Clube Fenianos Portuenses, constituíram um esforço insano e heróico – com a PIDE sempre às canelas – cuja história está por fazer. E atrevo-me a afirmar aqui que esse trabalho da nossa Delegação constituiu uma verdadeira história daquela Sociedade de Escritores, que em Lisboa, além de uns prémios literários, se gastou em querelas intestinas de que tínhamos por vezes melancólicas notícias. O trabalho de Óscar Lopes foi algo de extraordinário, a sua capacidade de diálogo, o seu empenho, a sua maneira de vencer as adversidades, é inesquecível para aqueles que tiveram a possibilidade de com ele viverem esses anos. Até o humor comunicativo com que via entrar os PIDES para assistir aos colóquios e o descaro do estenógrafo pidesco que em plenas sessões registava não só as falas mas também os gestos dos participantes “eu fui, na PIDE, confrontado com um gesto meu descrito num dos relatórios!”. A lista de escritores e, ocasionalmente, de teóricos da Educação e da Cultura que por ali passaram é impressionante “várias vezes pensei coligir num opúsculo elementos para que um dia essa história pudesse mais facilmente ser escrita; continuo a pensar nisso, mas…” e a acção cultural desenvolvida nas consciências (que o próprio director da PIDE no Porto me confessou que «o assustava», numa das vezes em que tive de dar explicações a tão «alto nível») foi decerto espantosa, embora, infelizmente, não possa ser tão facilmente contabilizada. Foram cinco, seis anos de trabalho intenso, até que o prémio dado a Luandino Vieira resolveu o problema (o problema das «autoridades» que contra nós se sentiam um pouco impotentes, receosas do escândalo que seria proibir-nos a actividade – de tal modo se sentia que a cidade estava connosco): a Sociedade Portuguesa de Escritores foi então arbitrariamente encerrada por ordem do próprio ditador. Os bens existentes foram delapidados num assalto executado por alguns jovens ultra, mascarados de escritores indignados, que com essa acção conquistaram o direito de se encaixarem como vagos plumitivos nas colunas do Diário da Manhã. A direcção da Sociedade Portuguesa de Escritores, presidida por Jacinto Prado Coelho, contestou o acto em tribunal, mas era evidente que teríamos de perder o processo, embora o parecer defensivo fosse assinado por…Marcelo Caetano. Quando este subiu ao poder, sabíamos que, pelo menos e em função disso, ele não poderia negar a criação de uma nova associação de escritores. E não negou. Ainda aqui o papel dinamizador de Óscar Lopes, trabalhando na elaboração do Estatuto e “picando” de longe a inércia lisboeta que deixou passar meses antes de uma conclusão definitiva do projecto, foi redentor. E de novo aceitou presidir à primeira (e praticamente única) Delegação do Norte da Associação Portuguesa de Escritores, formada em Julho de 1973. A sua capacidade de trabalho era (e continua) inacreditável, um milagre da natureza, penso eu quando vejo a sua inteligência descer em voo picado sobre a presa: um problema de interpretação literária, um enigma linguístico, uma explicação dos meandros da política nacional ou internacional, uma digressão pela música ou pela matemática aplicada, sem pedantismos, vaidades, antes com uma frescura de quem soube evitar que o rolar dos anos destruísse a capacidade inteligente de sorver a vida. Nesta hora de homenagem, sinto-me feliz por estar presente para o abraço fraterno que todos lhe devemos.