Mário David Soares
O meu primeiro contacto com Saramago deu-se quando, em 1981, adquiri através do Círculo de Leitores a Viagem a Portugal. Eu, que já conhecia a Voyage Autour de Ma Chambre e as Viagens na Minha Terra, fiquei confuso quando me apercebi que a Viagem de Saramago se servia de uma personagem – o viajante – para narrar a sua própria viagem. Afinal o narrador era também o narrado. Era a viagem do autor/narrador na pessoa de uma outra – o viajante.
Este meu primeiro encontro ocorreu bem antes do Levantado do Chão, embora este livro tivesse antecedido aquele, o que significa que perdi a primeira edição de 1980. Mas a saga dos trabalhadores rurais do Alentejo na sua luta pela emancipação não me podia escapar nem que fosse pelo debate que a contra reforma agrária suscitava naquele época.
E, mais uma vez, sou surpreendido pela rutura estilística de Saramago. Agora muito mais violenta e, por isso, muito mais surpreendente.
Começaram os rumores de que Saramago não utilizava a pontuação corretamente: não tinha pontos nem vírgulas. Mas os pontos estavam lá e vírgulas não faltavam. Os pontos, como diz a gramática, servem para marcar o fim de uma frase declarativa e separar períodos entre si. E assim lá estavam no texto. Pelo seu lado, e seguindo as regras, as vírgulas existem para separar elementos que pertencendo à frase não formam uma unidade sintática. E assim lá estavam no texto. Mas tudo continuava a soar estranho.
Deu-se então o caso que eu, durante 5 dias consecutivos, acordei sempre com o mesmo sonho estranho: sonhava não com a história, mas com o estilo que a contava. Como professor que era de português eu precisava de perceber o que se passava. E, tal como Freud, interpretei o meu sonho e cheguei à conclusão de que Saramago tinha inventado o modo de as suas personagens me falarem diretamente sem dois pontos ou travessões – o que eu ouvia eram as vozes em direto sem que o narrador as repetisse. O que eu sentia, eram as emoções em direto sem que ninguém me as explicasse. O que Saramago acabara de inventar era o modo de meter a oralidade na escrita narrativa.
E a isto chama-se genialidade. Ponto.