Maria Augusta Carvalho
Final de uma manhã de aulas, almoço correndo apressada, a notícia. E naquele momento, o maior silêncio em lágrimas (in)contidas gritou. [Pouco mais de um ano antes, em livro que comentávamos, com toda a convicção me dizias ‘não vou morrer sem ver este homem ganhar o Nobel’.] De José Saramago, o Nobel que previste e em teu dia de anos chegou, tanta coisa foi já dita num inesgotável que sempre h(aver)á para dizer. Em mim retenho o amigo, o camarada, as conversas que tivemos, os ‘Cadernos’ que chegavam, os livros que me assinaste, nuns olhos que te sorriam aquele afagar de primeiras edições ‘mas estes são tão antigos…’, a carta que me escreveste, ‘porque felizmente a cegueira não é ainda universal’ (me) dizias tu.
Outros vão tu continuas, na imensa obra a tua em nós tu vives, José, nome de erva, o garoto da Azinhaga, o dos banhos no Almonda, de Josefa e Jerónimo o neto. Josefa, a avó que nada do mundo sabia, noventa anos, ‘fogo de uma adolescência nunca perdida’, ‘O mundo é tão bonito, e eu tenho tanta pena de morrer…’ A morte, que “sozinha”, assim dizias, “sem qualquer ajuda externa sempre matou muito menos do que o homem”, e não posso eu de ti discordar.
Jerónimo, o homem sem saber ler o mais sábio, o dos bacorinhos na cama, o das árvores abraçadas, o que debaixo da figueira contigo dormia e nas estrelas que tu vias em histórias de encantos mil te levava. Com o avô, era ver-te a ti menino, a recolher a palha, a fazer a cama ao gado, a accionar o mecanismo comunitário que a água fazia subir. Porque sobe a água, avô? E naquela Academia, perante um mundo que quis e sonhou diferente um neto que cresceu e foi Nobel os avós não esqueceu. José, o homem que de si próprio dizia “Não precisei de deixar de ser comunista para ganhar o Nobel”. E o meu pensamento voa, sou vontade, Blimunda, de Sete Sóis, Sete Luas, de Scarlatti a música, de Bartolomeu, Passarola. E de um Ricardo Reis que é o teu, “Aqui, onde o mar se acabou e a terra espera”, num Tejo que já navego, nevoeiro branco vencido, de pedra sou a jangada, na caverna que rejeito, a lucidez como norte.
De Santo Tirso a Lisboa, vermelhas bandeiras ao vento, Jerónimo, não o avô, mas o nosso, coração que cor de papoila me bate, em orgulho alevantado, bate triste, bate forte, ali mesmo eu o vi,
eu o ouvi. E num espaço-tempo viajo, humano de humanidade feito, palavras armas as tuas, “Chega-se mais facilmente a Marte do que ao nosso próprio semelhante” (…) “Alguém não anda a cumprir o seu dever” ainda te ouço a dizer. Os teus ideais a todo um mundo afirmando, no universo a que por direito ascendeste, homem do sorriso de menino, José, um do chão alevantado, o meu amigo, camarada, comunista e português.
E o Tejo, nas lágrimas que nos caíam, no Cão que as não lambia, de salgado se fez mar. E nesse mar de vermelho, punhos erguidos fechados de “Todos os Nomes feitos”, qual ‘Constante’ tu passavas… “levantado e principal”.
Santo Tirso, 08 de Outubro de 2018