Quando Saramago tirou o casaco

Manuela Espírito Santo

Outubro de 1998, na Alfândega do Porto decorre a Cimeira Ibero-Americana. Entre os chefes de Estado presentes, está Fidel Castro. Uma semana antes, é atribuído o Nobel a José Saramago, e o país exulta com a distinção. À margem do encontro, a Associação de Amizade Portugal Cuba organiza um espectáculo em Matosinhos. Participam artistas portugueses e galegos, solidários com o povo cubano, contra o embargo. Na manhã do espectáculo, alguém me diz, “talvez Fidel apareça”. Procuro confirmar junto de um amigo pertencente ao corpo diplomático. Muito a custo – informação confidencial – diz-me ser possível a presença de Fidel, que deseja encontrar-se com o escritor português.

Tarde, muito tarde, após o jantar oferecido aos chefes de Estado presentes na Cimeira, Fidel e Saramago chegam a Matosinhos. Recebe-os o autarca Narciso Miranda e dezenas de jornalistas. Antes de se dirigirem ao palco, Fidel pede para se encontrar a sós com Saramago. Havia sala preparada para o encontro, mas os seguranças esqueceram-se da chave. Guardava-a eu. Fidel hesita, mas acaba por usar a sala, que eu abri. Ultrapassado o incidente, sobem ao palco Fidel, Saramago, Narciso Miranda, a embaixadora de Cuba em Portugal. Talvez outras pessoas, agora não recordo.

Centro de Congressos esgotado. Os artistas, nos camarins, aguardam. Os discursos: breves palavras de Narciso e de Saramago. Fidel encerra. Durante mais de duas horas, fala ininterruptamente. O cansaço toma conta das pessoas do palco: em pé, sem qualquer apoio. A embaixadora alivia o desconforto apoiando-se ora num pé, ora noutro. Narciso acha ponto de apoio numa zona do palco e por lá se deixa ficar. Saramago tira o casaco e, em mangas de camisa, ouve, como os milhares de portugueses, galegos e cubanos presentes, um discurso memorável. Todo o tempo, ficámos presos pelo magnetismo de Fidel. Enfim, não houve espectáculo. E ninguém, creio, dera por mal aproveitado o tempo ali passado.

A esta distância, a evocação do acontecimento trouxe-me duas coisas: a sorte de conhecer, naquelas circunstâncias, duas figuras do século XX, e a recordação da voz [o mais difícil de recordar nos que partem, dizem] de Castro – quente, suave, forte, voz encantatória. Saudades, Comandante.