Lendo A Caverna, de José Saramago

Jorge Sarabando

Havia aquele Centro, cidade sempre a crescer dentro do mundo em volta a desvanecer-se em ruínas.

Uma cidade ortogonal, rígida nas suas regras, onde tudo está previsto e regulado, há hierarquias e autoridade, como convém.

Os cidadãos são rigorosamente vigiados por uma miríade de câmaras e um adestrado corpo de guardas, a bem da segurança de todos.

Os cidadãos têm amplas liberdades, como, por exemplo, a de escolher entre vinte marcas de iogurte, ou trinta de sumos, de fruta das melhores procedências.

Não tendo liquidez, não se incomode, o próprio Centro oferece modalidades de crédito bem favoráveis.

A todos é reconhecido o mérito, de acordo com os resultados e os indicadores estatísticos.

Dentro do grande Centro pode passear-se o dia inteiro, entre luzes a piscar e música ambiente, e arrendam-se mesmo apartamentos, para famílias pequenas, a preços módicos.

Um enorme cartaz, postado à entrada, diz tudo o que é útil saber dos honestos propósitos e larga visão dos empreendedores: “vender-lhe-íamos tudo quanto você necessitasse se não preferíssemos que você precisasse do que temos para vender-lhe”.

Não há cá disputas políticas, grandes écrans transmitem a febre dos jogos e a algazarra das claques, e telejornais permanentes explicam o que se passa no mundo.

Está tudo nos seus lugares, pode mesmo nascer-se no grande Centro e lá ficar sempre, se cada um cumprir os seus deveres.

Reina o deus mercado e suas leis, servido por uma equipa de competentes gestores.

Não se compreende certos comentários, que alguém ouviu, de que tudo isto não é vida, mas uma imitação da vida.

Não se compreende, francamente, como ainda há gente que desgoste do grande Centro e do manto dos seus benefícios. Tomam-no como se fora uma casa sombria e procuram uma janela por abrir, onde entre luz e ar livre, dizem.

Circula gente assim ao longo do livro. Pessoas que olham para as mãos e lhes dão valor, falam do saber invisível dos dedos, a moldar o barro como se construíssem o futuro, usam palavras
caídas em desuso, há imaginação, encanto, bom senso e o saber prático das mulheres.

Alguém terá visto uma alegre família a seguir pela estrada fora, num horizonte sem limites, quando o sol despontava. Dois deles terão descido a uma funda caverna, vedada ao público, e lá encontraram, no escuro, alguma coisa que lhes abriu os olhos. É o que dizem.

Só lendo o livro se poderá confirmar tão estranho final.