Os intelectuais comunistas do Porto são os herdeiros legítimos de uma notável herança que, simultaneamente, os deve estimular e responsabilizar. No período romântico, em que a pequena burguesia do Porto tinha uma expressão cultural relativamente independente e própria, em que alguns pequenos logistas aguentaram, durante catorze anos a publicação de uma revista, “A Grinalda” (1855-69), fundaram instituições como o Ateneu Comercial, hoje dominado pela alta burguesia, e sustentaram temporadas regulares de teatro e de ópera – esta cidade conheceu figuras como Camilo, Arnaldo gama, Júlio Dinis e Guilherme Braga. Aproveito a oportunidade para lembrar que estamos a deixar passar uma importante efeméride já anterior a isso, a Revolução de Setembro de 1836, a que se ligam portuenses como Passos Manuel e Almeida Garrett e que corresponde a uma fase progressiva e patriótica, há precisamente século e meio, dessa pequena burguesia, por vezes aliada a camadas mais populares, cujo facho do progresso os comunistas portugueses, e nomeadamente os portuenses, hoje empunham. Atrever-me-ei mesmo a notar que estamos a deixar passar em silêncio outra efeméride nacional importante, com repercussões ou analogias locais: a do levantamento social e patriótico de 1637, precisamente há 350 anos, que cobriu uma parte importante da actual zona da Reforma Agrária e quase coincidiu com movimentos populares antifilipinos no Porto, como o chamado motim “das maçarocas” e a resistência popular a um capitão-mor que queria impôr a sua autoridade aos portuenses.
Não precisarei lembrar que, mesmo neste século, o Porto foi o centro de origem e irradiação do movimento da Renascença Portuguesa e da tradição das universidades populares, a que estamos a dar continuidade docente e editorial com a actual Universidade Popular do Porto, naturalmente imbuída de um espírito novo. E, como a comemoração das efemérides históricas é um dos meios de ganhar consciência e determinação activa e crítica, convém lembrar que no ano corrente de 1987 se completa meio século sobre o início da publicação da revista “Sol Nascente” (1937-40), que, paralelamente a certas fases de outras revistas também portuenses, constitui a melhor congregação local de esforços dentro do Neo-Realismo, o qual estava desde há poucos anos antes a formar-se em várias publicações periódicas e individuais de Lisboa, Coimbra e Porto. É conhecida a correlação que existe entre esse movimento estético e a conscientificação marxista do proletariado português.
A censura e a repressão fascistas deram golpes fundos numa actividade de edição de livros e revistas e de outras actividades culturais que se tinha desenvolvido no Porto ao longo do liberalismo monárquico e republicano, mas é significativo que, no momento em que essa censura e essa repressão se abatem sobre os intelectuais, já uma fracção importante e geralmente jovem, nos anos 30 e 40, se tinha apercebido de que a melhor cultura se liga agora, indissoluvelmente, e por várias vias, à luta de emancipação do proletariado, correspondente à última forma histórica de exploração social. O melhor, em geral, da cultura portuense, como aliás portuguesa, dos decénios de 1940, 50 e 60, está conexionada com a luta pela democracia, e já não sob as antigas feições liberais, que foram sempre contraditórias. (Basta notar que as revoluções liberais portuenses de 1820 e de 1891 tinham uma componente colonialista). A nova corrente democrática que, na sua expressão estética, sobretudo nos anos de 30 a 60, assume em Portugal o nome de “Neo-Realismo”, é muito mais consequente sob o ponto de vista social interno e externo. Os intelectuais democratas do Porto enveredaram a partir de então no sentido de criar organizações culturais que interessassem um grande número de pessoas. O Cine-Clube do Porto, o Teatro Experimental, a Cooperativa Árvore, a Unicepe, a série e editorial “Notícias do Bloqueio”, a série de colóquios da Casa dos Jornalistas e Homens de Letras do Porto, certas feições das páginas culturais dos diários portuenses, para apenas mencionar algumas das iniciativas mais antigas e estáveis, resultam de um esforço persistente em que a criação, a crítica e a divulgação ou auscultação culturais se ligaram à formação de uma consciência cívica democrática, que hoje é necessário continuar e, mais do que isso, levar até aos limites possíveis da sua criatividade e influência. O Partido Comunista Português, o único movimento político que então se expunha com o rosto e a coerência de um partido (a expressão “o Partido” queria então sempre dizer o “PCP”), desempenhou um papel fundamental, se não determinante, na conquista de espaços institucionais de legalidade ou semilegalidade cultural de cunho democrático. Como talvez já nem todos os presentes conheçam as lutas tenazes desse movimento cultural em que os comunistas desempenharam sempre um papel decisivo, lembrarei, por exemplo, que alguns dos organismos ou iniciativas culturais democráticas atrás mencionadas tiveram o seu lugar de origem ou estímulo inicial numa Sociedade Editora que, já no tempo da II Guerra Mundial, conseguiu fazer chegar a muitos interessados as obras mais odiosamente proibidas, que dispunha de uma utilíssima biblioteca de empréstimos e que pela primeira vez editou alguns contos de Soeiro Pereira Gomes e dispersos jornalísticos de Herculano.
Um número considerável de intelectuais portugueses, entre os quais se distinguiam comunistas, apoiou as campanhas coordenadas ilegal, semilegalmente e quanto possível legalmente pela democratização do país, nomeadamente o MUD de 1945 e, depois do 25 de Abril, tem participado na convocação e realização de manifestações públicas, em defesa da Reforma Agrária, das nacionalizações, do respeito pela Constituição vigente, da Central Sindical Unitária, da salvaguarda da paz mundial e do espírito de diálogo e concertação, e ainda a favor da solidariedade com os países africanos que se libertaram do colonialismo português, contra o racismo e, em especial, o apartheid. Os intelectuais, como grupo social, têm problemas com aspectos específicos que, em geral, estão em relação de sintonia com os das camadas sociais em ascensão histórica. Pelo que diz respeito aos escritores, numa sociedade em que a produção e a aquisição de bens passa necessariamente pelo mercado, o grande problema consiste em que apenas as grandes tiragens compensam o avultado investimento imposto pela complexidade e eficiência dos actuais meios editoriais. As editoras pequenas enfrentam dificuldades crescentes; uma grande parte das edições caras, das edições ilustradas, das edições de arte ou destinadas a popularizar o património cultural da humanidade, a variedade das paisagens naturais ou humanas, as principais linhas de avanço histórico, científico, técnico ou enciclopédico – são hoje controladas por grandes empresas transnacionais de coedição, que se abalançaram mesmo a colecções de êxitos clássicos ou recentes da própria literatura e, em especial, da literatura portuguesa. Não há dúvida de que certas tiragens editoriais atingem rapidamente cifras inéditas, mas o actual sistema apoia-se no efeito publicitário dos prémios e em toda uma grande máquina de promoção, de que resulta o vedetismo de alguns nomes, com o apagamento de certas obras recentes ou mais antigas que mereciam muito maior atenção.
Aquilo de que os escritores portugueses mais precisam (e o problema põe-se em termos análogos para os outros trabalhadores culturais) é o de organizar-se, para conquistar todos os direitos inerentes à profissionalização dos realmente dotados e empenhados, nomeadamente as garantias sociais em eventual situação de inabilidade; devem organizar-se para se defenderem de um sistema que não lhes confere direitos que todavia deveriam ser contratualmente automáticos, como a verificação das tiragens e o controle sobre a utilização social, remunerada ou não, das suas criações; devem organizar-se para estabelecerem vias de contacto directo com o público real ou potencial, no país e no estrangeiro, em escolas de todos os níveis, associações populares, sindicatos, cooperativas, instituições autárquicas de natureza cultural. Tudo isto será possível se, como acontece nos países socialistas, e até noutros, a Associação Portuguesa de Escritores tiver o direito de gerir uma pequena percentagem, talvez 1,5% ou 2%, sobre o preço de capa das obras caídas no domínio público, isto é, daquelas obras que, nos termos da lei, podem já ser lucrativamente editadas sem qualquer remuneração do autor ou seus descendentes.
Por outro lado, é preciso velar a sério pelo prestígio interno e externo da língua portuguesa. Mas a promoção do Português não se consegue com meros expedientes legais ou burocráticos, como o apertado condicionamento de acesso escolar, nomeadamente superior, a uma prova que, nas condições portuguesas actuais de falta de apoio propedêutico às camadas mais pobres ou desmotivadas, iria agravar o elitismo social desse ensino, pois nós sabemos hoje que só uma real preparação que tenha em conta as realidades sociolinguísticas pode possibilitar a obtenção de resultados satisfatórios para todos os candidatos naturalmente dotados. Por isso o Grupo Parlamentar do PCP apresentou uma proposta que, para além da selecção baseada no bom domínio da língua portuguesa, prevê uma série de medidas positivas que propiciem de facto essa aptidão de competência linguística. Outro exemplo de medida fundamentalmente burocrática destinada a alardear bons serviços à língua portuguesa é a recente criação de um Conselho Nacional de Apoio à Língua Portuguesa (CNALP). Assim como foi burocrática, e até mesmo contraproducente, a vcelebração de uma Acordo Ortográfico entre os países lusófonos sem que tal assunto tivesse proposto a um debate prévio, a até mesmo sem a intervenção das entidades mais qualificadas, como as Faculdades de Letras, os Centros de Investigação Linguística, as Associações de Linguísticas, Professores e Escritores de língua portuguesa.
As linhas reais da política idiomática do actual Governo encontra-se bem expresso no capítulo das Grandes Opções do Plano, felizmente derrotadas na Assembleia da República, onde, explicitamente se diz: “Prestigiamos mais um John dos Passos ou um John Philip Sousa, artistas que conseguiram dar contribuições à visão americana da América, do que um milhão de filhos de emigrantes que falam correctamente o Português.” O que esta infeliz enormidade mascara é o seguinte facto: que sem apoio da parte do Governo Português, o Governo da Frelimo conseguiu em Moçambique, onde o Português era uma língua minoritária, culturalmente menos importante que o inglês – conseguiu isto: entre a população activa, masculina e urbana, de pouco mais de 20 anos, eleva-se já a 90% o número de falantes de português, ultrapassando 60% o mesmo grupo etário masculino rural e isto de acordo com o censo populacional de 1980. E num artigo da revista “Cassendo”, o escritor angolano Pepetela informa que, segundo o Censo da população de Luanda realizado em 1983, e tanto quanto já se pode apurar, oscila entre cerca de 98% e cerca de 99% a percentagem da população que se declara falante do Português. Ora nas referidas Grandes Opções do Plano declara-se que no Brasil e nas ex-colónias portuguesas, Portugal deve contentar-se com “pequenas acções intensivas junto das elites”. Assim como, entre outros dislates, o texto dessas Grandes opções preconizava que o esforço de promover traduções da literatura portuguesa se deve modestamente confinar ao Inglês e ao Francês.
É mais do que óbvio que ao desenvolvimento da cultura portuguesa o que interessa é o alargamento, e não o afunilamento, das nossas relações e o empenho de conhecimento recíproco entre os povos. Do ponto de vista interno, a qualificação do português que se fala ou escreve depende de factores que o documento apresentado a esta Assembleia do Sector Intelectual do Porto do PCP põe bem em relevo: o aumento da cobertura da Educação Pré-Escolar, que neste distrito do Porto se encontra actualmente ao nível dos 21,3%, abaixo da já baixa média do País, que é de 31%; a extensão da escolaridade obrigatória, para já, até ao 9º ano; uma adequada formação de professores, incluindo a criação de condições de formação permanente, graças a um sistema de cooperação eficaz entre as Escolas, os serviços de estágio pedagógico, as Escolas Superiores de Educação e as Faculdades de Letras, hoje transformadas em fornecedores de diplomas para o desemprego, devido, nomeadamente, à insuficiência do nosso esquema de ensino obrigatório, que não consegue absorver os novos licenciados das Universidades oficiais, ainda por cima sujeitos à concorrência de formações mais expeditivas de docentes do Ensino Secundário, e ainda à concorrência das universidades privadas. Assim, numa altura em que os licenciados em História sem emprego atingem a ordem dos milhares, a Universidade Portucalense admite 600 alunos em Ciências Históricas.
O nosso país precisa, urgentemente, de um governo que seja de facto democrático, capaz de resolver os gravíssimos problemas pendentes e que inverta a política de desastre a que temos estado sujeitos neste último decénio; o nosso país precisa de um governo que se empenhe a criar efectivas condições de autodeterminação económica, social e cultural.
Nós vamos lutar por uma efectiva democratização da vida social e cultural portuguesa. Há verdades que temos de fazer chegar ao conhecimento da população portuguesa, incluindo a população portuense, sem deixar de, ao mesmo tempo, aprender com a sua experiência vivida. Com o apoio do povo consciente e graças à coesão interna, à força coesiva já tão provada do nosso Partido, o mais disciplinado, o mais dinâmico e experiente dos partidos portugueses, que em breve celebrará o seu 66º aniversário – nós venceremos com certeza.
Por um novo governo e por uma política democrática!
Pela independência nacional e pela paz!
Viva o Partido Comunista Português!
intervenção proferida na 1ª Assembleia do Sector Intelectual do Porto do PCP, 18 de Janeiro de 1987