Na arte como na vida: breve introdução ao neo-realismo em Portugal
José António Gomes
Em 2011, comemoraram-se os centenários do nascimento de Alves Redol e de Manuel da Fonseca e os noventa anos do nascimento de Carlos de Oliveira, assinalando-se ainda, em 2012, os trinta anos da morte de Sidónio Muralha, a um ano, acrescente-se, da celebração dos cem anos do nascimento de Ilse Losa. Vários são, neste contexto, os congressos e outras iniciativas científicas e cívicas que evidenciam um reacender do interesse pelo movimento neorrealista.
Por tal motivo e porque sofremos hoje as consequências de mais uma dessas crises do capitalismo que continuam a garrotear os povos, à semelhança do que aconteceu na época em que os neorrealistas deram asas ao seu projeto e à sua inventividade artística, estamos em momento propício para recordar sumariamente os principais traços de uma corrente que não quis dissociar a arte da vida, nem o ofício intelectual do trabalho e da luta das massas populares, e que foi, naturalmente, muito «determinad[a] por circunstâncias de ordem sociopolítica» (Besse, 1990: 5), a saber:
- Em Portugal, o derrube da 1.ª República (regime parlamentar, tendencialmente de democracia burguesa) pelo golpe de estado militar de 28 de Maio de 1926, seguido da instauração de uma ditadura. A ascensão de Salazar a presidente do Conselho de Ministros em 1932, depois de um período em que assumira a pasta das Finanças. A criação, em 1933, do chamado «Estado Novo», regime ditatorial de partido único e de cariz fascista, acarretando a perseguição dos opositores políticos, em especial comunistas, anarco-sindicalistas, republicanos e outros democratas. As prisões políticas subsequentes, por vezes sem julgamento (no Aljube, em Caxias, em Peniche, em Angra do Heroísmo, no campo de concentração do Tarrafal (Cabo Verde), etc.). A repressão de manifestações e de outras atividades políticas (pela PVDE, pela PIDE que lhe sucedeu, e pela Legião Portuguesa). Os maus-tratos, a tortura e os assassinatos políticos de militantes comunistas e de outros opositores. A proibição do direito à greve e à criação de partidos. A destituição dos democratas de cargos e funções públicos. As limitações drásticas à liberdade de associação e de expressão (censura à imprensa, à rádio, às publicações em geral, ao teatro, ao cinema…). A instauração de um regime político ao serviço dos mais ricos e poderosos, dos monopólios e dos latifundiários (senhores da terra do Ribatejo e do Alentejo). O atraso económico e cultural. A diminuição da escolaridade obrigatória (3.º ano) e a manutenção de elevados índices de analfabetismo, de miséria e de mortalidade infantil. E, no plano internacional, a identificação ideológica com os regimes ditatoriais europeus (a Espanha de Franco, a Itália de Mussolini, a Alemanha de Hitler), a que não raro se somava quer o apoio político a esses mesmos regimes quer um diplomático jogo de cintura com cedências à Inglaterra. De registar ainda a subsequente submissão ao imperialismo norte-americano.
- Os protagonistas do movimento neorrealista foram ainda testemunhas, em Portugal, da tragédia da Guerra Civil Espanhola (1936-39), ou seja, do conflito aberto pelas forças militares golpistas de extrema-direita do general Franco contra os apoiantes do governo eleito e democrático da República, com o consequente triunfo do franquismo e a instauração de uma sanguinária ditadura fascista (leia-se, a este propósito, A Casa de Eulália (1997), de Manuel Tiago/Álvaro Cunhal).
- E foram, finalmente, testemunhas quer do descalabro económico do capitalismo nos anos vinte e trinta, quer da 2.ª Guerra Mundial (1939-45), isto é, da guerra dos fascismos (desencadeada pela Alemanha de Hitler, apoiada pela Itália de Mussolini e pelo Japão) contra o pólo constituído pelos Aliados (União Soviética, Inglaterra, forças da resistência francesa, italiana e de outros países europeus ocupados, e Estados Unidos da América), após a capitulação das democracias burguesas europeias face ao projeto imperialista da Alemanha nazi.
É neste contexto histórico que, segundo Maria Graciete Besse (1990: 5-6),
«o neorrealismo (…) corresponde a uma nova atitude perante o homem e a natureza. Revalorizando a noção de real e opondo-se ao fixismo da corrente realista dos finais do séc. XIX, o movimento neorrealista pressupõe uma visão dialética da realidade e tenta impor uma literatura capaz de se afastar do individualismo e do esteticismo exagerados a que levara a conceção [de arte] (…) praticada pelo grupo coimbrão da Presença.»
Se o realismo oitocentista privilegiava a representação literária das classes altas e da média burguesia, o neorrealismo centra-se nas classes populares, socialmente desfavorecidas.
O que no enfrentamento entre presencistas e neorrealistas estava em causa «era uma diversa interpretação da função do escritor e da literatura na sociedade; os neorrealistas não podiam aceitar uma literatura que acusavam de ser individualista, psicologista e desinteressada do homem concreto e social», no dizer de Carlos Reis (1996: 530-31). Tais divergências tiveram expressão pública em diversas polémicas em jornais e revistas, como O Diabo e Vértice, nos anos trinta e quarenta, polémicas essas em que chegou a intervir Álvaro Cunhal, sob o pseudónimo de António Vale.
Recorrendo de novo à síntese de Maria Graciete Besse (1990: 6), refira-se que o neorrealismo é, pois, marcado por uma revalorização do realismo «explicável por fatores históricos (crise económica, ascensão dos fascismos, Guerra de Espanha, etc.)»; e «por fatores estético-literários, em particular, a influência de obras teóricas como A Arte e a Vida, de Plekhanov (que denuncia a conceção da “arte pela arte”), a vulgarização do pensamento marxista levada a cabo, entre 1936 e 1939, em publicações periódicas como O Diabo e Sol Nascente», mais tarde na Seara Nova e na Vértice,
«ou ainda a divulgação de obras capitais da literatura comprometida, em especial o romance do nordeste brasileiro (Jorge Amado, Lins do Rego, Graciliano Ramos) e as traduções de obras americanas (John Steinbeck, John dos Passos, Erskine Caldwell) ou soviéticas (Gladkov, Máximo Gorki)»,
sem esquecer o cinema neorrealista italiano (Vittorio de Sica, Giuseppe de Santis, Roberto Rossellini, Luchino Visconti, os primeiros filmes de Federico Fellini e de outros realizadores como Dino Risi) e também alguma narrativa de ficção italiana de cunho neorrealista (Elio Vittorini, os primeiros livros de Italo Calvino, etc.).
No neorrealismo português, observa-se ainda a influência da poesia de um Federico García Lorca e de outros representantes da chamada geração espanhola de 27; de um Afonso Duarte (poeta presencista que se distancia do presencismo); e – talvez não seja ousado acrescentar – de uma certa dimensão social e antifascista da ficção narrativa de um Aquilino Ribeiro, de um Miguel Torga e, sobretudo, de um Ferreira de Castro.
No dizer de Maria Graciete Besse (1990: 6), o neorrealismo foi, portanto, um «movimento de consciencialização do fenómeno artístico cujo objetivo essencial era a denúncia das condições infra-humanas de existência de uma camada importante do campesinato português» – como vemos em Manuel da Fonseca –, por vezes do proletariado urbano ou suburbano ou ainda das infâncias desvalidas (leia-se Esteiros, de Soeiro Pereira Gomes), bem como o retrato dos que levavam a cabo uma ação política clandestina e revolucionária de oposição ao fascismo e de consciencialização dos mais desfavorecidos em relação às suas difíceis condições de vida (pobreza, fome, doença, desemprego, baixos salários), como é possível observar no conto «Mais um herói», de Soeiro, ou em Até amanhã, Camaradas, de Manuel Tiago/Álvaro Cunhal.
Importa referir também que os jovens intelectuais do neorrealismo se sentiam animados por um anseio de «transformar uma sociedade em que a juventude não encontra[va] a possibilidade de realizar o seu ideal de vida» e de uma «tomada de consciência capaz de enriquecer a literatura portuguesa com novos temas, novos personagens», designadamente camponeses e operários, «e sobretudo uma nova visão do espaço, preferencialmente situado a sul do Tejo», mas também, por vezes, nas periferias industriais das cidades, «e funcionando como revelador de numerosos conflitos e tensões» (Besse, 1990: 6). Na escrita ficcional, era, assim, conferida particular atenção
«às camadas populares, não à maneira de Júlio Dinis, de Camilo Castelo Branco, de Abel Botelho, ou de Raul Brandão, mas através da análise pormenorizada das condições de vida e das contradições internas da organização social»,
à qual subjazia «a óptica da luta de classes com uma solução “positiva” dos conflitos», segundo Eduardo Lourenço (Besse, 1990: 6-7).
Acrescente-se que os neo-realistas assumiram sempre uma posição ideológica perante a realidade e que foram, muitos deles, militantes do PCP, a que aderiram nas décadas de trinta e de quarenta. Como afirma Maria Graciete Besse (1990: 7), «ao contrário dos naturalistas» dos finais do séc. XIX e dos inícios do séc. XX,
«que se interessam por casos marcados pelo determinismo social, os escritores neorrealistas não se inclinaram sobre o povo mas, como afirma Mário Dionísio, misturaram-se com ele “a ponto de as suas obras não serem mais do que uma das muitas vozes dele”».
Tratou-se, pois, de um movimento fortemente influenciado pelo marxismo, cujos protagonistas mantiveram intransigente e tenaz oposição ao salazarismo, o que para muitos acarretaria duras consequências – casos, entre outros, de Soeiro Pereira Gomes (obrigado a mergulhar na clandestinidade na sequência das grandes greves operárias do início dos anos quarenta), de Carlos Pato (que deixou escassos escritos e foi morto na prisão de Caxias em 1950, na sequência dos maus tratos a que foi submetido), de Alves Redol (várias vezes preso), de Joaquim Namorado (impedido de ensinar) ou de Manuel da Fonseca (preso, a 22 de Maio de 1965, pela PIDE e acusado de atividades contra a segurança do Estado, após a Sociedade Portuguesa de Escritores, a cuja direcção pertencia, atribuir o Prémio de Novelística a Luuanda, de Luandino Vieira, então preso no Tarrafal).
No romance, na novela e no conto encontraram os neorrealistas modalidades de expressão preferenciais, mais do que na poesia e no drama, pois a prosa narrativa, pela sua natureza discursiva e expansividade, pelo seu modo peculiar de recriação do real, se mostrava mais adequada à representação realista dos cenários humanos e sociais, suas contradições, tensões e conflitos. No entanto, é também inegável que o neorrealismo produziu poetas de grande mérito, como João José Cochofel, José Gomes Ferreira, Manuel da Fonseca ou Carlos de Oliveira – porventura o maior de todos e um dos grandes renovadores da escrita poética em português, em especial a partir dos anos sessenta, além de autor de singulares romances como Pequenos Burgueses (1948), Uma Abelha na Chuva (1953) ou Finisterra, Paisagem e Povoamento (1978), quase um extenso e denso poema em prosa que afirmaria uma nova linguagem romanesca em Portugal, em finais dos anos setenta, e geraria um infindável debate crítico sobre a obra do autor.
Os neorrealistas são responsáveis ainda por uma considerável produção de textos doutrinários, crítica, ensaio e polémica, a que se soma a circunstância, nem sempre valorizada, de terem sido verdadeiros renovadores da produção literária para a infância em Portugal, sobretudo a partir de finais dos anos quarenta. Recordo, neste capítulo, livros como os de Sidónio Muralha, Alves Redol, José Gomes Ferreira, Papiniano Carlos, Ilse Losa e de escritoras de gerações ulteriores em cujas obras ainda é visível a influência neo-realista, como Matilde Rosa Araújo e Maria Rosa Colaço. Mas como não lembrar aqui, também, o belo conto de Álvaro Cunhal Os Barrigas e os Magriços, destinado à infância, ainda que apenas editado em livro em 2009?
Os melhores neorrealistas, como foi demonstrado pela história e pela crítica literárias, conseguiram distanciar-se da feição militante, ideológica e documental de certas obras mais ortodoxas e, segundo Carlos Reis (1996: 531), «valorizar as potencialidades artísticas da narrativa ou da poesia lírica, sem pôr em causa necessariamente os fundamentos ideológicos do movimento», produzindo assim admiráveis obras de arte literária, como Esteiros (1941), de Soeiro Pereira Gomes; Barranco de Cegos (1961), de Alves Redol; Uma Abelha na Chuva (1953), Finisterra (1978) ou Trabalho Poético (1977), de Carlos de Oliveira; Cerromaior (1943), Seara de Vento (1958), O Fogo e as Cinzas (1953) e quase toda a obra poética de Manuel da Fonseca; Casa da Malta (1945), Minas de S. Francisco (1946), A Noite e a Madrugada (1950) ou O Trigo e o Joio (1954), de Fernando Namora; O Dia Cinzento (1944), de Mário Dionísio, ou ainda os volumes de Poeta Militante (1977, 1978), de José Gomes Ferreira, para não falar da sua prosa cronística e memorialística ou dessa obra-prima que é As Aventuras de João Sem Medo, texto que dificilmente poderemos considerar como neo-realista, mas que não deixa de ser um original conto de fadas às avessas, surrealizante e bem-humorado libelo contra a resignação e o marasmo do Portugal salazarista, claramente aludido na caracterização da aldeia do «Chora-que-Logo-Bebes» onde nascera o destemido herói.
Embora existam manifestações literárias anteriores (até nas páginas da Presença, que os neorrealistas vivamente criticaram, mas em que alguns inicialmente colaboraram), 1939 é apontado, em geral, como o ponto de partida deste movimento artístico, por ter sido o ano de edição do romance Gaibéus, do escritor ribatejano Alves Redol (a questão, no entanto, é controversa). Mas a presença neorrealista prolonga-se, na literatura portuguesa do século XX, praticamente até aos nossos dias, tendo influenciado escritores posteriores como José Cardoso Pires, Baptista-Bastos, Mário Ventura, Mário Castrim, Bento da Cruz, José Carlos Ary dos Santos ou mesmo, na literatura para jovens, António Mota.
Em geral, consideram-se dois núcleos iniciais no neorrealismo: o coimbrão (que dinamizou as coleções de poesia «Novo Cancioneiro» e de prosa «Novos Prosadores»), a que estiveram ligados João José Cochofel, Carlos de Oliveira, Joaquim Namorado, Fernando Namora e outros que nessas coleções publicaram, como Políbio Gomes dos Santos, Manuel da Fonseca e Sidónio Muralha; e o de Vila Franca de Xira / Alhandra (zona operária da periferia de Lisboa), a que é costume associar Alves Redol, Arquimedes da Silva Santos, Soeiro Pereira Gomes, vozes menos conhecidas como Garcez da Silva, Bona da Silva, Carlos Pato e outros, mais tarde, como Júlio Graça. Este núcleo mantinha, nos anos trinta e quarenta, estreito relacionamento militante com o grande dirigente comunista, de origem operária, António Dias Lourenço, cujo retrato é recriado num dos Contos Vermelhos, de Soeiro. Foi, ele próprio, autor de valiosos escritos sobretudo políticos – mas também de um ou outro poema – e de uma recolha comovente de cartas e desenhos dirigidos ao seu filho Tóino, falecido, ainda criança, durante o longo encarceramento de Dias Lourenço, em Peniche: Saudades… Não Têm Conto! (2004).
Duas palavras para Alves Redol (1911-1969) e para Manuel da Fonseca (1911-1993), duas das figuras maiores do neorrealismo, o primeiro considerado como o autor de um dos seus textos fundadores, o romance Gaibéus, de 1939, retrato dos jornaleiros do Ribatejo ou da Beira Baixa que vão trabalhar nas lezírias durante as mondas, e que se nos impõem enquanto personagem coletiva. Recriação realista, também, das condições extremas de um trabalho árduo de sol a sol, pontuado pelas doenças (malária) e pela fadiga, em que o tempo prolongado de exploração é, aqui e acolá, mitigado por escassas horas de lazer, por sonhos de uma vida melhor, por projetos irrealizáveis e pela efémera alegria proporcionada pelo vinho. Um cenário paisagístico e sobretudo humano em que, além do mais, as mulheres são vítimas de outro tipo de exploração, sujeitas aos caprichos sexuais do senhor das terras. Com Marés (1941), Avieiros (1941), Fanga (1943) e com os três livros do Ciclo Port Wine (1949-1953), Redol afirmar-se-ia como figura de proa do neorrealismo na prosa narrativa (cultivaria também o teatro e os estudos de cariz etnográfico, reveladores de vivo interesse pela cultura do povo ribatejano), revelando no referido ciclo as condições de vida dos trabalhadores das vinhas do Douro, aos quais se juntaria a fim de partilhar as duríssimas experiências desses homens e mulheres e colher os seus testemunhos. Refinando os aspectos formais, ganhando crescente desenvoltura no plano técnico-narrativo, e na sequência de A Barca dos Sete Lemes (1958), Redol procede, em Barranco de Cegos (1961), considerada a sua obra maior, a uma nova incursão pelo ambiente sócio-histórico do Ribatejo de finais do século XIX, através da figura «imponente e sinistra, autoritária e humana» de Diogo Relvas – para usar as palavras de Carlos Reis (1996: 404) –, que
«representa a crise de um tempo e de uma mentalidade que podem ser extrapolados, nos planos simbólico e axiológico, para o tempo de opressão e violência de que Redol foi testemunha e também vítima».
Infatigável dinamizador cultural do movimento associativo popular, Redol deixa-se seduzir também pelas etapas iniciais da vida humana – que igualmente seduziram Manuel da Fonseca –, oferecendo-nos, na série de quatro livros «Maria Flor» (1968-70) e em A Vida Mágica da Sementinha: uma breve história do trigo (1956), belíssimos exemplos, hoje clássicos, de uma escrita literária de qualidade destinada à infância. Essa mesma infância – ribatejana, rural e pobre, aventureira e corajosa, mas sempre sonhadora – a que daria protagonismo no inesquecível Constantino, Guardador de Vacas e de Sonhos (1962), obra cuja leitura viria a ser, ainda hoje é, aconselhada na escola do pós-25 de Abril.
Na prosa de Manuel da Fonseca e na sua poesia – permeável aos ecos de Lorca –, não encontramos apenas um cantor ímpar da paisagem alentejana e dos tipos humanos que a povoam: o maltês, o assalariado rural, a rapariga casadoira, o bêbado, o frustrado funcionário da câmara, o fotógrafo, o sapateiro, o contador de histórias, o bombeiro… Muitas vezes, é também um cantor amargurado dos dias sem saída, mergulhados no marasmo das pequenas vilas do sul, num Portugal salazarento, assombrado pelo poderio arbitrário e cruel dos grandes latifundiários, estribado nas forças da repressão fascista e numa administração local corrompida. Um dos temas desta escrita é a revolta dos assalariados contra a miséria e a fome, umas vezes ainda individual, como em Cerromaior (1943), outras vezes já enquadrada pelo coletivo e até organizada num sentido revolucionário, como sucede com Mariana, a filha de Palma, nesse romance com muito de cinematograficamente expressionista que é Seara de Vento (1958). Páginas onde, como já escrevemos noutro local, quase se ouve esse tão simbólico vento que flagela a planície e se testemunha toda a sua violência sobre homens, mulheres e crianças, num cenário em que sobressaem as extraordinárias figuras, a um tempo trágicas e épicas, da velha Amanda Carrusca e de Palma – o camponês insubmisso, vítima da sanha persecutória de um latifundiário e das forças da Guarda ao seu serviço, a quem Amanda, Mariana e a própria realidade acabam por demonstrar que «Um homem só não vale nada!». Destaque-se ainda, em Manuel da Fonseca, além da ironia e do humor, uma escrita imbuída de lirismo, de certeira notação descritiva, na captação dos tipos humanos e da paisagem, que, não poucas vezes, se deixou influenciar pelo cinema, como se torna visível em O Fogo e as Cinzas (1953) e noutros livros. Obra-prima da arte de narrar, é este um dos melhores livros de contos da literatura portuguesa do século XX, oferecendo toda uma galeria de personagens inesquecíveis como o senhor Rodrigo, fotógrafo, o ridículo bombeiro Leonel Badanas, o mendigo Rana, ou André Juliano, Chico Biló, mestre Poupa e as suas vidas falhadas, num tempo em que o rádio e os primeiros automóveis chegavam ao Alentejo e o velho Largo da vila deixava de ser o «centro do mundo» (leia-se, a propósito, «O Largo», que, mais do que um conto, é um quase poema em prosa, dos mais belos e comoventes da literatura portuguesa do século XX).
A terminar registem-se, em jeito de súmula, alguns dos principais autores com ligações ao neorrealismo ou que dele colheram significativa influência, vários deles já mencionados: Manuel da Fonseca, Carlos de Oliveira, Alves Redol, Soeiro Pereira Gomes, Fernando Namora, Mário Dionísio, Sidónio Muralha, João José Cochofel, José Gomes Ferreira, Joaquim Namorado, Armindo Rodrigues, Políbio Gomes dos Santos, Álvaro Feijó, Arquimedes da Silva Santos, Faure da Rosa e Vergílio Ferreira (apenas nos seus primeiros livros), a que deverá juntar-se Ilse Losa – judia alemã naturalizada portuguesa – quer em alguns dos seus romances para adultos quer nos seus primeiros contos para crianças. Merecem ainda referência Afonso Ribeiro, Mário Braga, António Ramos de Almeida, Manuel Campos Lima, Rodrigo Soares, Joaquim Ferrer, Alexandre Cabral, Júlio Graça, José Ferreira Monte, Antunes da Silva e, é claro, Manuel Tiago (pseudónimo de Álvaro Cunhal), entre outros.
Pertencentes a gerações posteriores, são de referir ainda Alexandre Pinheiro Torres, Orlando da Costa, José Fernandes Fafe, Romeu Correia, Bernardo Santareno (na literatura dramática), Daniel Filipe, António Reis, António Rebordão Navarro, Luís Veiga Leitão, Egito Gonçalves e Papiniano Carlos (estes três dinamizando, a partir de 1957, no Porto, uma colecção de poesia, «Notícias do Bloqueio», que prolongou o legado poético neorrealista). Mário Sacramento, Mário Dionísio, Alexandre Pinheiro Torres, Álvaro Salema, Óscar Lopes – mas também Eduardo Lourenço, com o seu livro fundamental, de 1968, Sentido e Forma da Poesia Neorrealista – foram alguns dos principais críticos com ligações diretas ou indiretas ao neorrealismo.
Tanto na música (com Fernando Lopes-Graça e Francine Benoît) como na pintura e no desenho (Júlio Pomar, Manuel Ribeiro de Pavia, Manuel Filipe, Querubim Lapa, Maria Keil, Álvaro Cunhal, Rogério Ribeiro, Lima de Freitas, Júlio Resende, José Dias Coelho e outros), bem como na fotografia (Adelino Lyon de Castro, Franklin Figueiredo) e ainda no cinema (Manuel Guimarães – trabalhando, por exemplo, com argumentos de Redol – e mesmo Fernando Lopes), ficaram igualmente inscritas as marcas do neorrealismo. Não poderíamos, a este propósito, deixar de lembrar, de passagem, a importância das célebres canções Heróicas de Lopes-Graça, admirável música coral de luta e resistência composta sobre poemas de Carlos de Oliveira, José Gomes Ferreira, Armindo Rodrigues, Mário Dionísio, Joaquim Namorado e João José Cochofel, entre outros.
Acrescente-se que, nas artes plásticas, uma das principais influências proveio da pintura dos mexicanos Orozco e Diego Rivera (exaltando o povo mexicano e as suas origens pré-colombianas, valorizando o seu esforço na luta pela liberdade, no combate anticolonialista e na construção do progresso do seu país) e do brasileiro Cândido Portinari.
Artistas profundamente ligados à vida, ao povo, às suas aspirações e lutas, e por isso tantas vezes incompreendidos e até vilipendiados, os melhores neorrealistas praticaram uma arte que, sem abdicar da sua autonomia relativa, se constituiu como manifestação de modernidade num país adiado, oprimido por um regime ditatorial e retrógrado, e num mundo injusto, marcado pelas crises do capitalismo, pelos trágicos conflitos bélicos a que deram origem, mas também pela luta dos povos pela sua emancipação. Nesse duro contexto e durante os negros anos do fascismo, seriam porventura, quase todos eles, capazes de subscrever estes versos de Manuel da Fonseca (1975: 83 e 95), quando proclama que, do olhar do poeta, «sai uma estrela voando nas trevas / tocando de esperança o coração dos homens de todas as latitudes», e ele se sente capaz de «destruir esta civilização capitalista, que inventou o domingo. (…) uma das coisas mais belas / que um homem podia fazer na vida!»
Alguns dos principais livros da primeira geração do neorrealismo português
Alves Redol – Gaibéus (1939) Avieiros (1942) Fanga (1943) Barranco de Cegos (1961) (romances)
Soeiro Pereira Gomes – Esteiros (1941) Engrenagem (1951) (romances), Contos Vermelhos (ed. clandestina, s/l, s/d)
Carlos de Oliveira – Casa na Duna (1943) Pequenos Burgueses (1948) Uma Abelha na Chuva (1953) (romances) Trabalho Poético (1977) (poesia)
Manuel da Fonseca – Rosa dos Ventos (1940) Planície (1941) (poesia) Cerromaior (1943) Seara de Vento (1958) (romances) O Fogo e as Cinzas (1953) (contos)
Sidónio Muralha – Beco (1941) Passagem de Nível (1942) Companheira dos Homens (1950) (poesia)
Mário Dionísio – Poemas (1941) Poesia Incompleta (1966) O Dia Cinzento (1944) (contos)
Fernando Namora – Casa da Malta (1945) Minas de S. Francisco (1946) A Noite e a Madrugada (1950) O Trigo e o Joio (1954) (romances)
Vergílio Ferreira – Vagão J (1946) (romance)
José Gomes Ferreira – Poesia I (1948), etc., Poeta Militante (3 vols.) (1977, 1978)
Joaquim Namorado – Aviso à Navegação (1941) Incomodidade (1945) Poesia Necessária (1966) (poesia)
João José Cochofel – Sol de Agosto (1941) Descoberta (1945)
Referências bibliográficas
BESSE, Maria Graciete (1990). Manuel da Fonseca – O Fogo e as Cinzas. Mem Martins: Europa-América.
FONSECA, Manuel da (1975). Poemas Completos. Lisboa: Forja.
REIS, Carlos (1996). «Neo-realismo», in Machado, Álvaro Manuel (org. e dir.). Dicionário de Literatura Portuguesa. Lisboa: Presença, pp. 530-532.
Na arte como na vida: breve introdução ao neo-realismo em PortugalJosé António Gomes
Em 2011, comemoraram-se os centenários do nascimento de Alves Redol e de Manuel da Fonseca e os noventa anos do nascimento de Carlos de Oliveira, assinalando-se ainda, em 2012, os trinta anos da morte de Sidónio Muralha, a um ano, acrescente-se, da celebração dos cem anos do nascimento de Ilse Losa. Vários são, neste contexto, os congressos e outras iniciativas científicas e cívicas que evidenciam um reacender do interesse pelo movimento neorrealista.
Por tal motivo e porque sofremos hoje as consequências de mais uma dessas crises do capitalismo que continuam a garrotear os povos, à semelhança do que aconteceu na época em que os neorrealistas deram asas ao seu projeto e à sua inventividade artística, estamos em momento propício para recordar sumariamente os principais traços de uma corrente que não quis dissociar a arte da vida, nem o ofício intelectual do trabalho e da luta das massas populares, e que foi, naturalmente, muito «determinad[a] por circunstâncias de ordem sociopolítica» (Besse, 1990: 5), a saber:
- Em Portugal, o derrube da 1.ª República (regime parlamentar, tendencialmente de democracia burguesa) pelo golpe de estado militar de 28 de Maio de 1926, seguido da instauração de uma ditadura. A ascensão de Salazar a presidente do Conselho de Ministros em 1932, depois de um período em que assumira a pasta das Finanças. A criação, em 1933, do chamado «Estado Novo», regime ditatorial de partido único e de cariz fascista, acarretando a perseguição dos opositores políticos, em especial comunistas, anarco-sindicalistas, republicanos e outros democratas. As prisões políticas subsequentes, por vezes sem julgamento (no Aljube, em Caxias, em Peniche, em Angra do Heroísmo, no campo de concentração do Tarrafal (Cabo Verde), etc.). A repressão de manifestações e de outras atividades políticas (pela PVDE, pela PIDE que lhe sucedeu, e pela Legião Portuguesa). Os maus-tratos, a tortura e os assassinatos políticos de militantes comunistas e de outros opositores. A proibição do direito à greve e à criação de partidos. A destituição dos democratas de cargos e funções públicos. As limitações drásticas à liberdade de associação e de expressão (censura à imprensa, à rádio, às publicações em geral, ao teatro, ao cinema…). A instauração de um regime político ao serviço dos mais ricos e poderosos, dos monopólios e dos latifundiários (senhores da terra do Ribatejo e do Alentejo). O atraso económico e cultural. A diminuição da escolaridade obrigatória (3.º ano) e a manutenção de elevados índices de analfabetismo, de miséria e de mortalidade infantil. E, no plano internacional, a identificação ideológica com os regimes ditatoriais europeus (a Espanha de Franco, a Itália de Mussolini, a Alemanha de Hitler), a que não raro se somava quer o apoio político a esses mesmos regimes quer um diplomático jogo de cintura com cedências à Inglaterra. De registar ainda a subsequente submissão ao imperialismo norte-americano.
- Os protagonistas do movimento neorrealista foram ainda testemunhas, em Portugal, da tragédia da Guerra Civil Espanhola (1936-39), ou seja, do conflito aberto pelas forças militares golpistas de extrema-direita do general Franco contra os apoiantes do governo eleito e democrático da República, com o consequente triunfo do franquismo e a instauração de uma sanguinária ditadura fascista (leia-se, a este propósito, A Casa de Eulália (1997), de Manuel Tiago/Álvaro Cunhal).
- E foram, finalmente, testemunhas quer do descalabro económico do capitalismo nos anos vinte e trinta, quer da 2.ª Guerra Mundial (1939-45), isto é, da guerra dos fascismos (desencadeada pela Alemanha de Hitler, apoiada pela Itália de Mussolini e pelo Japão) contra o pólo constituído pelos Aliados (União Soviética, Inglaterra, forças da resistência francesa, italiana e de outros países europeus ocupados, e Estados Unidos da América), após a capitulação das democracias burguesas europeias face ao projeto imperialista da Alemanha nazi.
É neste contexto histórico que, segundo Maria Graciete Besse (1990: 5-6),
«o neorrealismo (…) corresponde a uma nova atitude perante o homem e a natureza. Revalorizando a noção de real e opondo-se ao fixismo da corrente realista dos finais do séc. XIX, o movimento neorrealista pressupõe uma visão dialética da realidade e tenta impor uma literatura capaz de se afastar do individualismo e do esteticismo exagerados a que levara a conceção [de arte] (…) praticada pelo grupo coimbrão da Presença.»
Se o realismo oitocentista privilegiava a representação literária das classes altas e da média burguesia, o neorrealismo centra-se nas classes populares, socialmente desfavorecidas.
O que no enfrentamento entre presencistas e neorrealistas estava em causa «era uma diversa interpretação da função do escritor e da literatura na sociedade; os neorrealistas não podiam aceitar uma literatura que acusavam de ser individualista, psicologista e desinteressada do homem concreto e social», no dizer de Carlos Reis (1996: 530-31). Tais divergências tiveram expressão pública em diversas polémicas em jornais e revistas, como O Diabo e Vértice, nos anos trinta e quarenta, polémicas essas em que chegou a intervir Álvaro Cunhal, sob o pseudónimo de António Vale.
Recorrendo de novo à síntese de Maria Graciete Besse (1990: 6), refira-se que o neorrealismo é, pois, marcado por uma revalorização do realismo «explicável por fatores históricos (crise económica, ascensão dos fascismos, Guerra de Espanha, etc.)»; e «por fatores estético-literários, em particular, a influência de obras teóricas como A Arte e a Vida, de Plekhanov (que denuncia a conceção da “arte pela arte”), a vulgarização do pensamento marxista levada a cabo, entre 1936 e 1939, em publicações periódicas como O Diabo e Sol Nascente», mais tarde na Seara Nova e na Vértice,
«ou ainda a divulgação de obras capitais da literatura comprometida, em especial o romance do nordeste brasileiro (Jorge Amado, Lins do Rego, Graciliano Ramos) e as traduções de obras americanas (John Steinbeck, John dos Passos, Erskine Caldwell) ou soviéticas (Gladkov, Máximo Gorki)»,
sem esquecer o cinema neorrealista italiano (Vittorio de Sica, Giuseppe de Santis, Roberto Rossellini, Luchino Visconti, os primeiros filmes de Federico Fellini e de outros realizadores como Dino Risi) e também alguma narrativa de ficção italiana de cunho neorrealista (Elio Vittorini, os primeiros livros de Italo Calvino, etc.).
No neorrealismo português, observa-se ainda a influência da poesia de um Federico García Lorca e de outros representantes da chamada geração espanhola de 27; de um Afonso Duarte (poeta presencista que se distancia do presencismo); e – talvez não seja ousado acrescentar – de uma certa dimensão social e antifascista da ficção narrativa de um Aquilino Ribeiro, de um Miguel Torga e, sobretudo, de um Ferreira de Castro.
No dizer de Maria Graciete Besse (1990: 6), o neorrealismo foi, portanto, um «movimento de consciencialização do fenómeno artístico cujo objetivo essencial era a denúncia das condições infra-humanas de existência de uma camada importante do campesinato português» – como vemos em Manuel da Fonseca –, por vezes do proletariado urbano ou suburbano ou ainda das infâncias desvalidas (leia-se Esteiros, de Soeiro Pereira Gomes), bem como o retrato dos que levavam a cabo uma ação política clandestina e revolucionária de oposição ao fascismo e de consciencialização dos mais desfavorecidos em relação às suas difíceis condições de vida (pobreza, fome, doença, desemprego, baixos salários), como é possível observar no conto «Mais um herói», de Soeiro, ou em Até amanhã, Camaradas, de Manuel Tiago/Álvaro Cunhal.
Importa referir também que os jovens intelectuais do neorrealismo se sentiam animados por um anseio de «transformar uma sociedade em que a juventude não encontra[va] a possibilidade de realizar o seu ideal de vida» e de uma «tomada de consciência capaz de enriquecer a literatura portuguesa com novos temas, novos personagens», designadamente camponeses e operários, «e sobretudo uma nova visão do espaço, preferencialmente situado a sul do Tejo», mas também, por vezes, nas periferias industriais das cidades, «e funcionando como revelador de numerosos conflitos e tensões» (Besse, 1990: 6). Na escrita ficcional, era, assim, conferida particular atenção
«às camadas populares, não à maneira de Júlio Dinis, de Camilo Castelo Branco, de Abel Botelho, ou de Raul Brandão, mas através da análise pormenorizada das condições de vida e das contradições internas da organização social»,
à qual subjazia «a óptica da luta de classes com uma solução “positiva” dos conflitos», segundo Eduardo Lourenço (Besse, 1990: 6-7).
Acrescente-se que os neo-realistas assumiram sempre uma posição ideológica perante a realidade e que foram, muitos deles, militantes do PCP, a que aderiram nas décadas de trinta e de quarenta. Como afirma Maria Graciete Besse (1990: 7), «ao contrário dos naturalistas» dos finais do séc. XIX e dos inícios do séc. XX,
«que se interessam por casos marcados pelo determinismo social, os escritores neorrealistas não se inclinaram sobre o povo mas, como afirma Mário Dionísio, misturaram-se com ele “a ponto de as suas obras não serem mais do que uma das muitas vozes dele”».
Tratou-se, pois, de um movimento fortemente influenciado pelo marxismo, cujos protagonistas mantiveram intransigente e tenaz oposição ao salazarismo, o que para muitos acarretaria duras consequências – casos, entre outros, de Soeiro Pereira Gomes (obrigado a mergulhar na clandestinidade na sequência das grandes greves operárias do início dos anos quarenta), de Carlos Pato (que deixou escassos escritos e foi morto na prisão de Caxias em 1950, na sequência dos maus tratos a que foi submetido), de Alves Redol (várias vezes preso), de Joaquim Namorado (impedido de ensinar) ou de Manuel da Fonseca (preso, a 22 de Maio de 1965, pela PIDE e acusado de atividades contra a segurança do Estado, após a Sociedade Portuguesa de Escritores, a cuja direcção pertencia, atribuir o Prémio de Novelística a Luuanda, de Luandino Vieira, então preso no Tarrafal).
No romance, na novela e no conto encontraram os neorrealistas modalidades de expressão preferenciais, mais do que na poesia e no drama, pois a prosa narrativa, pela sua natureza discursiva e expansividade, pelo seu modo peculiar de recriação do real, se mostrava mais adequada à representação realista dos cenários humanos e sociais, suas contradições, tensões e conflitos. No entanto, é também inegável que o neorrealismo produziu poetas de grande mérito, como João José Cochofel, José Gomes Ferreira, Manuel da Fonseca ou Carlos de Oliveira – porventura o maior de todos e um dos grandes renovadores da escrita poética em português, em especial a partir dos anos sessenta, além de autor de singulares romances como Pequenos Burgueses (1948), Uma Abelha na Chuva (1953) ou Finisterra, Paisagem e Povoamento (1978), quase um extenso e denso poema em prosa que afirmaria uma nova linguagem romanesca em Portugal, em finais dos anos setenta, e geraria um infindável debate crítico sobre a obra do autor.
Os neorrealistas são responsáveis ainda por uma considerável produção de textos doutrinários, crítica, ensaio e polémica, a que se soma a circunstância, nem sempre valorizada, de terem sido verdadeiros renovadores da produção literária para a infância em Portugal, sobretudo a partir de finais dos anos quarenta. Recordo, neste capítulo, livros como os de Sidónio Muralha, Alves Redol, José Gomes Ferreira, Papiniano Carlos, Ilse Losa e de escritoras de gerações ulteriores em cujas obras ainda é visível a influência neo-realista, como Matilde Rosa Araújo e Maria Rosa Colaço. Mas como não lembrar aqui, também, o belo conto de Álvaro Cunhal Os Barrigas e os Magriços, destinado à infância, ainda que apenas editado em livro em 2009?
Os melhores neorrealistas, como foi demonstrado pela história e pela crítica literárias, conseguiram distanciar-se da feição militante, ideológica e documental de certas obras mais ortodoxas e, segundo Carlos Reis (1996: 531), «valorizar as potencialidades artísticas da narrativa ou da poesia lírica, sem pôr em causa necessariamente os fundamentos ideológicos do movimento», produzindo assim admiráveis obras de arte literária, como Esteiros (1941), de Soeiro Pereira Gomes; Barranco de Cegos (1961), de Alves Redol; Uma Abelha na Chuva (1953), Finisterra (1978) ou Trabalho Poético (1977), de Carlos de Oliveira; Cerromaior (1943), Seara de Vento (1958), O Fogo e as Cinzas (1953) e quase toda a obra poética de Manuel da Fonseca; Casa da Malta (1945), Minas de S. Francisco (1946), A Noite e a Madrugada (1950) ou O Trigo e o Joio (1954), de Fernando Namora; O Dia Cinzento (1944), de Mário Dionísio, ou ainda os volumes de Poeta Militante (1977, 1978), de José Gomes Ferreira, para não falar da sua prosa cronística e memorialística ou dessa obra-prima que é As Aventuras de João Sem Medo, texto que dificilmente poderemos considerar como neo-realista, mas que não deixa de ser um original conto de fadas às avessas, surrealizante e bem-humorado libelo contra a resignação e o marasmo do Portugal salazarista, claramente aludido na caracterização da aldeia do «Chora-que-Logo-Bebes» onde nascera o destemido herói.
Embora existam manifestações literárias anteriores (até nas páginas da Presença, que os neorrealistas vivamente criticaram, mas em que alguns inicialmente colaboraram), 1939 é apontado, em geral, como o ponto de partida deste movimento artístico, por ter sido o ano de edição do romance Gaibéus, do escritor ribatejano Alves Redol (a questão, no entanto, é controversa). Mas a presença neorrealista prolonga-se, na literatura portuguesa do século XX, praticamente até aos nossos dias, tendo influenciado escritores posteriores como José Cardoso Pires, Baptista-Bastos, Mário Ventura, Mário Castrim, Bento da Cruz, José Carlos Ary dos Santos ou mesmo, na literatura para jovens, António Mota.
Em geral, consideram-se dois núcleos iniciais no neorrealismo: o coimbrão (que dinamizou as coleções de poesia «Novo Cancioneiro» e de prosa «Novos Prosadores»), a que estiveram ligados João José Cochofel, Carlos de Oliveira, Joaquim Namorado, Fernando Namora e outros que nessas coleções publicaram, como Políbio Gomes dos Santos, Manuel da Fonseca e Sidónio Muralha; e o de Vila Franca de Xira / Alhandra (zona operária da periferia de Lisboa), a que é costume associar Alves Redol, Arquimedes da Silva Santos, Soeiro Pereira Gomes, vozes menos conhecidas como Garcez da Silva, Bona da Silva, Carlos Pato e outros, mais tarde, como Júlio Graça. Este núcleo mantinha, nos anos trinta e quarenta, estreito relacionamento militante com o grande dirigente comunista, de origem operária, António Dias Lourenço, cujo retrato é recriado num dos Contos Vermelhos, de Soeiro. Foi, ele próprio, autor de valiosos escritos sobretudo políticos – mas também de um ou outro poema – e de uma recolha comovente de cartas e desenhos dirigidos ao seu filho Tóino, falecido, ainda criança, durante o longo encarceramento de Dias Lourenço, em Peniche: Saudades… Não Têm Conto! (2004).
Duas palavras para Alves Redol (1911-1969) e para Manuel da Fonseca (1911-1993), duas das figuras maiores do neorrealismo, o primeiro considerado como o autor de um dos seus textos fundadores, o romance Gaibéus, de 1939, retrato dos jornaleiros do Ribatejo ou da Beira Baixa que vão trabalhar nas lezírias durante as mondas, e que se nos impõem enquanto personagem coletiva. Recriação realista, também, das condições extremas de um trabalho árduo de sol a sol, pontuado pelas doenças (malária) e pela fadiga, em que o tempo prolongado de exploração é, aqui e acolá, mitigado por escassas horas de lazer, por sonhos de uma vida melhor, por projetos irrealizáveis e pela efémera alegria proporcionada pelo vinho. Um cenário paisagístico e sobretudo humano em que, além do mais, as mulheres são vítimas de outro tipo de exploração, sujeitas aos caprichos sexuais do senhor das terras. Com Marés (1941), Avieiros (1941), Fanga (1943) e com os três livros do Ciclo Port Wine (1949-1953), Redol afirmar-se-ia como figura de proa do neorrealismo na prosa narrativa (cultivaria também o teatro e os estudos de cariz etnográfico, reveladores de vivo interesse pela cultura do povo ribatejano), revelando no referido ciclo as condições de vida dos trabalhadores das vinhas do Douro, aos quais se juntaria a fim de partilhar as duríssimas experiências desses homens e mulheres e colher os seus testemunhos. Refinando os aspectos formais, ganhando crescente desenvoltura no plano técnico-narrativo, e na sequência de A Barca dos Sete Lemes (1958), Redol procede, em Barranco de Cegos (1961), considerada a sua obra maior, a uma nova incursão pelo ambiente sócio-histórico do Ribatejo de finais do século XIX, através da figura «imponente e sinistra, autoritária e humana» de Diogo Relvas – para usar as palavras de Carlos Reis (1996: 404) –, que
«representa a crise de um tempo e de uma mentalidade que podem ser extrapolados, nos planos simbólico e axiológico, para o tempo de opressão e violência de que Redol foi testemunha e também vítima».
Infatigável dinamizador cultural do movimento associativo popular, Redol deixa-se seduzir também pelas etapas iniciais da vida humana – que igualmente seduziram Manuel da Fonseca –, oferecendo-nos, na série de quatro livros «Maria Flor» (1968-70) e em A Vida Mágica da Sementinha: uma breve história do trigo (1956), belíssimos exemplos, hoje clássicos, de uma escrita literária de qualidade destinada à infância. Essa mesma infância – ribatejana, rural e pobre, aventureira e corajosa, mas sempre sonhadora – a que daria protagonismo no inesquecível Constantino, Guardador de Vacas e de Sonhos (1962), obra cuja leitura viria a ser, ainda hoje é, aconselhada na escola do pós-25 de Abril.
Na prosa de Manuel da Fonseca e na sua poesia – permeável aos ecos de Lorca –, não encontramos apenas um cantor ímpar da paisagem alentejana e dos tipos humanos que a povoam: o maltês, o assalariado rural, a rapariga casadoira, o bêbado, o frustrado funcionário da câmara, o fotógrafo, o sapateiro, o contador de histórias, o bombeiro… Muitas vezes, é também um cantor amargurado dos dias sem saída, mergulhados no marasmo das pequenas vilas do sul, num Portugal salazarento, assombrado pelo poderio arbitrário e cruel dos grandes latifundiários, estribado nas forças da repressão fascista e numa administração local corrompida. Um dos temas desta escrita é a revolta dos assalariados contra a miséria e a fome, umas vezes ainda individual, como em Cerromaior (1943), outras vezes já enquadrada pelo coletivo e até organizada num sentido revolucionário, como sucede com Mariana, a filha de Palma, nesse romance com muito de cinematograficamente expressionista que é Seara de Vento (1958). Páginas onde, como já escrevemos noutro local, quase se ouve esse tão simbólico vento que flagela a planície e se testemunha toda a sua violência sobre homens, mulheres e crianças, num cenário em que sobressaem as extraordinárias figuras, a um tempo trágicas e épicas, da velha Amanda Carrusca e de Palma – o camponês insubmisso, vítima da sanha persecutória de um latifundiário e das forças da Guarda ao seu serviço, a quem Amanda, Mariana e a própria realidade acabam por demonstrar que «Um homem só não vale nada!». Destaque-se ainda, em Manuel da Fonseca, além da ironia e do humor, uma escrita imbuída de lirismo, de certeira notação descritiva, na captação dos tipos humanos e da paisagem, que, não poucas vezes, se deixou influenciar pelo cinema, como se torna visível em O Fogo e as Cinzas (1953) e noutros livros. Obra-prima da arte de narrar, é este um dos melhores livros de contos da literatura portuguesa do século XX, oferecendo toda uma galeria de personagens inesquecíveis como o senhor Rodrigo, fotógrafo, o ridículo bombeiro Leonel Badanas, o mendigo Rana, ou André Juliano, Chico Biló, mestre Poupa e as suas vidas falhadas, num tempo em que o rádio e os primeiros automóveis chegavam ao Alentejo e o velho Largo da vila deixava de ser o «centro do mundo» (leia-se, a propósito, «O Largo», que, mais do que um conto, é um quase poema em prosa, dos mais belos e comoventes da literatura portuguesa do século XX).
A terminar registem-se, em jeito de súmula, alguns dos principais autores com ligações ao neorrealismo ou que dele colheram significativa influência, vários deles já mencionados: Manuel da Fonseca, Carlos de Oliveira, Alves Redol, Soeiro Pereira Gomes, Fernando Namora, Mário Dionísio, Sidónio Muralha, João José Cochofel, José Gomes Ferreira, Joaquim Namorado, Armindo Rodrigues, Políbio Gomes dos Santos, Álvaro Feijó, Arquimedes da Silva Santos, Faure da Rosa e Vergílio Ferreira (apenas nos seus primeiros livros), a que deverá juntar-se Ilse Losa – judia alemã naturalizada portuguesa – quer em alguns dos seus romances para adultos quer nos seus primeiros contos para crianças. Merecem ainda referência Afonso Ribeiro, Mário Braga, António Ramos de Almeida, Manuel Campos Lima, Rodrigo Soares, Joaquim Ferrer, Alexandre Cabral, Júlio Graça, José Ferreira Monte, Antunes da Silva e, é claro, Manuel Tiago (pseudónimo de Álvaro Cunhal), entre outros.
Pertencentes a gerações posteriores, são de referir ainda Alexandre Pinheiro Torres, Orlando da Costa, José Fernandes Fafe, Romeu Correia, Bernardo Santareno (na literatura dramática), Daniel Filipe, António Reis, António Rebordão Navarro, Luís Veiga Leitão, Egito Gonçalves e Papiniano Carlos (estes três dinamizando, a partir de 1957, no Porto, uma colecção de poesia, «Notícias do Bloqueio», que prolongou o legado poético neorrealista). Mário Sacramento, Mário Dionísio, Alexandre Pinheiro Torres, Álvaro Salema, Óscar Lopes – mas também Eduardo Lourenço, com o seu livro fundamental, de 1968, Sentido e Forma da Poesia Neorrealista – foram alguns dos principais críticos com ligações diretas ou indiretas ao neorrealismo.Tanto na música (com Fernando Lopes-Graça e Francine Benoît) como na pintura e no desenho (Júlio Pomar, Manuel Ribeiro de Pavia, Manuel Filipe, Querubim Lapa, Maria Keil, Álvaro Cunhal, Rogério Ribeiro, Lima de Freitas, Júlio Resende, José Dias Coelho e outros), bem como na fotografia (Adelino Lyon de Castro, Franklin Figueiredo) e ainda no cinema (Manuel Guimarães – trabalhando, por exemplo, com argumentos de Redol – e mesmo Fernando Lopes), ficaram igualmente inscritas as marcas do neorrealismo. Não poderíamos, a este propósito, deixar de lembrar, de passagem, a importância das célebres canções Heróicas de Lopes-Graça, admirável música coral de luta e resistência composta sobre poemas de Carlos de Oliveira, José Gomes Ferreira, Armindo Rodrigues, Mário Dionísio, Joaquim Namorado e João José Cochofel, entre outros.
Acrescente-se que, nas artes plásticas, uma das principais influências proveio da pintura dos mexicanos Orozco e Diego Rivera (exaltando o povo mexicano e as suas origens pré-colombianas, valorizando o seu esforço na luta pela liberdade, no combate anticolonialista e na construção do progresso do seu país) e do brasileiro Cândido Portinari.
Artistas profundamente ligados à vida, ao povo, às suas aspirações e lutas, e por isso tantas vezes incompreendidos e até vilipendiados, os melhores neorrealistas praticaram uma arte que, sem abdicar da sua autonomia relativa, se constituiu como manifestação de modernidade num país adiado, oprimido por um regime ditatorial e retrógrado, e num mundo injusto, marcado pelas crises do capitalismo, pelos trágicos conflitos bélicos a que deram origem, mas também pela luta dos povos pela sua emancipação. Nesse duro contexto e durante os negros anos do fascismo, seriam porventura, quase todos eles, capazes de subscrever estes versos de Manuel da Fonseca (1975: 83 e 95), quando proclama que, do olhar do poeta, «sai uma estrela voando nas trevas / tocando de esperança o coração dos homens de todas as latitudes», e ele se sente capaz de «destruir esta civilização capitalista, que inventou o domingo. (…) uma das coisas mais belas / que um homem podia fazer na vida!»
Alguns dos principais livros da primeira geração do neorrealismo português
Alves Redol – Gaibéus (1939) Avieiros (1942) Fanga (1943) Barranco de Cegos (1961) (romances)
Soeiro Pereira Gomes – Esteiros (1941) Engrenagem (1951) (romances), Contos Vermelhos (ed. clandestina, s/l, s/d)
Carlos de Oliveira – Casa na Duna (1943) Pequenos Burgueses (1948) Uma Abelha na Chuva (1953) (romances) Trabalho Poético (1977) (poesia)
Manuel da Fonseca – Rosa dos Ventos (1940) Planície (1941) (poesia) Cerromaior (1943) Seara de Vento (1958) (romances) O Fogo e as Cinzas (1953) (contos)
Sidónio Muralha – Beco (1941) Passagem de Nível (1942) Companheira dos Homens (1950) (poesia)
Mário Dionísio – Poemas (1941) Poesia Incompleta (1966) O Dia Cinzento (1944) (contos)
Fernando Namora – Casa da Malta (1945) Minas de S. Francisco (1946) A Noite e a Madrugada (1950) O Trigo e o Joio (1954) (romances)
Vergílio Ferreira – Vagão J (1946) (romance)
José Gomes Ferreira – Poesia I (1948), etc., Poeta Militante (3 vols.) (1977, 1978)
Joaquim Namorado – Aviso à Navegação (1941) Incomodidade (1945) Poesia Necessária (1966) (poesia)
João José Cochofel – Sol de Agosto (1941) Descoberta (1945)
Referências bibliográficas
BESSE, Maria Graciete (1990). Manuel da Fonseca – O Fogo e as Cinzas. Mem Martins: Europa-América.
FONSECA, Manuel da (1975). Poemas Completos. Lisboa: Forja.
REIS, Carlos (1996). «Neo-realismo», in Machado, Álvaro Manuel (org. e dir.). Dicionário de Literatura Portuguesa. Lisboa: Presença, pp. 530-532.