Intervenção de José Luís Borges Coelho na conferência "O Movimento Neo-realista na Arte e na Vida"

Em entrevista inserta no número especial da Vértice integralmente dedicado a Fernando Lopes graça quando se comemoravam os 75 anos, inquirindo ele, mesmo a concluir – e cito - “sobre que relação existe entre Lopes-Graça música e Lopes-Graça cidadão politicamente empenhado” - questão que encerra, na sua formulação extremada, aquela outra, sempre candente e sempre actual, das relações entre a arte, o artista e a vida, que foi a pedra de toque do movimento literário e artístico que aqui evocamos (para que se não apague a memória, e também para que dessa evocação se colham lições para o futuro, estímulo a novos cometimentos) – o Compositor disparou:
- “Haverá que buscar estas relações de uma maneira digamos pragmática ou, acaso mais propriamente, normativa? Não responderá o homem, a sua obra, a sua acção, por si mesmo, sem necessidade de perscrutações “de fora”, que, se não são indiscretas, podem ser incómodas, enleantes? Deixo a resposta a quem tiver a amabilidade de me ler e queira pensar sem preconcebimentos nem mistificações”.
Mas, o que ler, neste “quem tver a amabilidade de me ler”?: Leia-me e deixe-me em paz? Remetia ele, então, a curiosidade inconsiderada do inquiridor – de todos os inquiridores – para a vastidão da sua obra literária?
Não creio que fosse.
Mas creio, ainda assim, que deixava ali um desafio a todos os esquadrinhadores do seu carácter e da sua conduta: - atrevam-se a ir mais além, mais ao fundo, confrontem este artista com a sua arte, surpreendam-lhe, na escrita, o pensamento, cruzem uma coisa com outra, o que pensa com o que cria, o homem com os seus actos, sondem cada parte, ou cada aspecto através do prisma de cada parte e de cada aspecto, e verifiquem se o artifício é capaz de captar uma brecha, de cindir o que é uno, não me ponham é a mim a proclamar o que quer que seja acerca do que quer que seja que eu seja.
Era assim de sua natureza. Assediado, de imediato se punha em guarda, súbito se lhe erguiam espessas barreiras de protecção. Ou de pudor. Aquela reserva, em todo o caso, que, se nos dermos a percorrer a sua música, amiúde salta, e o leva subitamente a inflectir o rumo apetecível da evolução dos “acontecimentos”, a interrompê-lo, a cortá-lo, de todas as vezes que ameace ele compreazer-se na mínima expansão dum lirismo pessoal da melhor cepa que – direi – lhe é inato, e aqui e ali teima em assomar, mas a que entende, quase por sistema, pela tal reserva, não dar livre curso. E, contudo, como nos pareciam refinados, requintados esses “indícios de ouro”. O ponto é que o artista não tem absolutamente que se dizer nesses termos, tem é que fazer da sua voz a expressão dos que a não têm, dos anseios mais profundos do povo deste torrão que o viu nascer, que arrosta, cabisbaixo, direi que desde o princípio, um calvário de silêncios humilhados. A singularidade do artista tem que a patentear ele na assunção militante dessa missão.
Aí me parece que residirá a bem provável explicação para aquele inconfundível modo de Lopes-Graça se expressar em música. Ainda quando dá voz aos poetas – e poder-se-ia elaborar toda uma antologia da poesia portuguesa, desde a medieva à sua coetânea, recorrendo, tão-só à sua obra para canto e piano – mesmo quando nos pareça por momentos que ando por ali, à rédea solta, a expressão dum individualismo de sentimentos, vertido, ainda assim, num melodismo de feição moderna, é que os sentimentos individuais que por ali andem os partilha, os experimenta do mesmo modo, em algum momento, toda a comunidade dos Humanos. Há um universalismo insofismável em tais assomos.
Por outro lado,  quanto desassombro, na proclamação dos princípios! Aí toda a reserva se estilhaça com fragor. Ler a sua prosa é um verdadeiro regalo. Toda. Desde o começo. Desde a que, pelos vinte e um / vinte e dois anos, destinou ao semanário A Acção (querem nome mais dignificativo?), criado em Tomar depois do 28 de Maio, semanário de que foi o primeiro director. Querem ver o rompante do moço? como se lhe engrossava a voz quando a apoiava uma causa comum? (“Um artista intervém”, p.21)
Foi toda a vida isso: desassombrado. Apanhamo-lo aqui a confessar-se “intransigentemente” democrata e republicano. No plural. Mas não é majestático esse plural. Traduz a alegria da pertença; proclama os princípios orientadores do semanário que por tal modo se apresenta; configura o afrontamento sem rodeios, estribado em direitos inalienáveis, do regime que se desenhava depois do golpe.
É mais comum vermo-lo a terçar armas, que é como quem diz, argumentos, pelos princípios. Dificilmente alguém o topa a vestir uma “etiqueta”, embora a ninguém restem dúvidas sobre a qualidade, a categoria do fato que enverga tão justo que chega a confundir-se com a própria pele.
A propósito: alguém o ouviu dizer-se, o apanhou a escrever-se neo-realista? Eu não, e se alguém sabe que sim é altura de no-lo dizer. Quem eram, contudo, os seus companheiros e amigos mais chegados? A que poetas lançou ,ão quando quis construir um cancioneiro de combate que o povo viesse a adoptar como seu? Que princípios lhe norteavam os passos?
As respostas a estas perguntas ireis ouvi-las em discurso directo. E com esse discurso directo se concluirá, esta intervenção quando parecer que chega.
Leitura de textos extraídos de:
“Música portuguesa e os seus problemas II”, Caminho, Lisboa, 1989: pág. 92-93;
“Reflexões sobre a música”, Ed. Cosmos, Lisboa, 1978: pág. 197-200;
“Opúsculos (2)”, Caminho, Lisboa, 1984: pág. 104-105;
“Disto e Daquilo”, Cosmos, Lisboa, 1973: pág. 275-277;
“Nossa Companheira Música”, Portugália Editora, 1964 (?): pág.128;
“A Canção Popular Portuguesa”, Colecção Saber, Europa-América, 1953: pág.12;
“Marchas, Danças e Canções”, Seara Nova, 1946: pág. 6-7
Em entrevista inserta no número especial da Vértice integralmente dedicado a Fernando Lopes Graça quando se comemoravam os 75 anos, inquirido ele, mesmo a concluir – e cito - “sobre que relação existe entre Lopes-Graça músico e Lopes-Graça cidadão politicamente empenhado” - questão que encerra, na sua formulação extremada, aquela outra, sempre candente e sempre actual, das relações entre a arte, o artista e a vida, que foi a pedra de toque do movimento literário e artístico que aqui evocamos (para que se não apague a memória, e também para que dessa evocação se colham lições para o futuro, estímulo a novos cometimentos) – o Compositor disparou:

- “Haverá que buscar estas relações de uma maneira digamos pragmática ou, acaso mais propriamente, normativa? Não responderá o homem, a sua obra, a sua acção, por si mesmo, sem necessidade de perscrutações “de fora”, que, se não são indiscretas, podem ser incómodas, enleantes? Deixo a resposta a quem tiver a amabilidade de me ler e queira pensar sem preconcebimentos nem mistificações”.

Mas, o que ler, neste “quem tiver a amabilidade de me ler”?: Leia-me e deixe-me em paz? Remetia ele, então, a curiosidade inconsiderada do inquiridor – de todos os inquiridores – para a vastidão da sua obra literária?
Não creio que fosse.
Mas creio, ainda assim, que deixava ali um desafio a todos os esquadrinhadores do seu carácter e da sua conduta: - atrevam-se a ir mais além, mais ao fundo, confrontem este artista com a sua arte, surpreendam-lhe, na escrita, o pensamento, cruzem uma coisa com outra, o que pensa com o que cria, o homem com os seus actos, sondem cada parte, ou cada aspecto através do prisma de cada parte e de cada aspecto, e verifiquem se o artifício é capaz de captar uma brecha, de cindir o que é uno, não me ponham é a mim a proclamar o que quer que seja acerca do que quer que seja que eu seja.

Era assim de sua natureza. Assediado, de imediato se punha em guarda, súbito se lhe erguiam espessas barreiras de protecção. Ou de pudor. Aquela reserva, em todo o caso, que, se nos dermos a percorrer a sua música, amiúde salta, e o leva subitamente a inflectir o rumo apetecível da evolução dos “acontecimentos”, a interrompê-lo, a cortá-lo, de todas as vezes que ameace ele comprazer-se na mínima expansão dum lirismo pessoal da melhor cepa que – direi – lhe é inato, e aqui e ali teima em assomar, mas a que entende, quase por sistema, pela tal reserva, não dar livre curso. E, contudo, como nos pareciam refinados, requintados esses “indícios de ouro”. O ponto é que o artista não tem absolutamente que se dizer nesses termos, tem é que fazer da sua voz a expressão dos que a não têm, dos anseios mais profundos do povo deste torrão que o viu nascer, que arrosta, cabisbaixo, direi que desde o princípio, um calvário de silêncios humilhados. A singularidade do artista tem que a patentear ele na assunção militante dessa missão.
Aí me parece que residirá a bem provável explicação para aquele inconfundível modo de Lopes-Graça se expressar em música. Ainda quando dá voz aos poetas – e poder-se-ia elaborar toda uma antologia da poesia portuguesa, desde a medieva à sua coetânea, recorrendo, tão-só à sua obra para canto e piano – mesmo quando nos pareça por momentos que anda por ali, à rédea solta, a expressão dum individualismo de sentimentos, vertido, ainda assim, num melodismo de feição moderna, é que os sentimentos individuais que por ali andem os partilha, os experimenta do mesmo modo, em algum momento, toda a comunidade dos Humanos. Há um universalismo insofismável em tais assomos.
Por outro lado,  quanto desassombro, na proclamação dos princípios! Aí toda a reserva se estilhaça com fragor. Ler a sua prosa é um verdadeiro regalo. Toda. Desde o começo. Desde a que, pelos vinte e um / vinte e dois anos, destinou ao semanário A Acção (querem nome mais significativo?), criado em Tomar depois do 28 de Maio, semanário de que foi o primeiro director. Querem ver o rompante do moço? como se lhe engrossava a voz quando a apoiava uma causa comum? (“Um artista intervém”, p.21)

Foi toda a vida isso: desassombrado. Apanhamo-lo aqui a confessar-se “intransigentemente” democrata e republicano. No plural. Mas não é majestático esse plural. Traduz a alegria da pertença; proclama os princípios orientadores do semanário que por tal modo se apresenta; configura o afrontamento sem rodeios, estribado em direitos inalienáveis, do regime que se desenhava depois do golpe.
É mais comum vermo-lo a terçar armas, que é como quem diz, argumentos, pelos princípios. Dificilmente alguém o topa a vestir uma “etiqueta”, embora a ninguém restem dúvidas sobre a qualidade, a categoria do fato que enverga tão justo que chega a confundir-se com a própria pele.
A propósito: alguém o ouviu dizer-se, o apanhou a escrever-se neo-realista? Eu não, e se alguém sabe que sim é altura de no-lo dizer. Quem eram, contudo, os seus companheiros e amigos mais chegados? A que poetas lançou mão quando quis construir um cancioneiro de combate que o povo viesse a adoptar como seu? Que princípios lhe norteavam os passos?
As respostas a estas perguntas ireis ouvi-las em discurso directo. E com esse discurso directo se concluirá, esta intervenção quando parecer que chega.


Leitura de textos extraídos de:
“Música portuguesa e os seus problemas II”, Caminho, Lisboa, 1989: pág. 92-93;
“Reflexões sobre a música”, Ed. Cosmos, Lisboa, 1978: pág. 197-200;
“Opúsculos (2)”, Caminho, Lisboa, 1984: pág. 104-105;
“Disto e Daquilo”, Cosmos, Lisboa, 1973: pág. 275-277;
“Nossa Companheira Música”, Portugália Editora, 1964 (?): pág.128;
“A Canção Popular Portuguesa”, Colecção Saber, Europa-América, 1953: pág.12;
“Marchas, Danças e Canções”, Seara Nova, 1946: pág. 6-7