Decidiu o Sector Intelectual do Porto assinalar, tardiamente,é certo, por contingências de um ano repassado de eleições, o centenário do nascimento de dois grandes escritores portugueses - Manuel da Fonseca e Alves Redol.
Embora a exposição documental hoje inaugurada ajude a conhecer o percurso cívico e o legado cultural de ambos, verdade é que o entendimento da sua escrita e da sua intervenção cívica será mais completo se as situarmos no movimento neo-realista.
É do neo-realismo, pois, que iremos falar, da essência desse movimento que marcou indelevelmente a criação artística e literária e a intervenção dos intelectuais no século XX.
Compreender o neo-realismo implica afastar a ideia de que se tratou de uma escola, com os seus cânones, a sua disciplina estética, os seus dogmas, os seus mestres e suas tutelas, embora a isso por vezes tenha sido reduzido, apoucado ou caricaturado, também por culpa, reconheça-se, dos exegetas do tempo.
Como método, situemos o tempo histórico da publicação dessa obra maior da poesia portuguesa que é a"Rosa dos Ventos", de Manuel da Fonseca, e da obra pioneira de Alves Redol,"Gaibéus".
Portugal vivia em plena ditadura salazarista, com miséria, fome nos campos e nas cidades, acesso restrito ao ensino e à saúde, censura e brutal repressão, com levas de centenas de prisioneiros a caminho das cadeias de Angra do Heroísmo e do Tarrafal. Os fascistas de Franco, vitoriosos da Guerra Civil, cometiam assassínios em massa, ainda hoje mal conhecidos, apesar dos esforços de alguns, como Baltazar Garzon, que por isso são castigados. As hordas nazis invadiam meia Europa, desde a Noruega à Grécia, ocupavam Paris e preparavam o assalto à União Soviética. Os militaristas japoneses somavam vitórias na China, ocupando territórios imensos à custa de inomináveis atrocidades. Na América Latina impunham-se líderes populistas, como Peron ou Getúlio Vargas, que perseguiam com mão de ferro os comunistas (leia-se a trágica história de Olga Benario).
Portugal era uma prisão para os que amavam a liberdade, e no terreno apenas uma força política resistia, entre prisões, torturas, degredos e exílio, peado por uma absoluta clandestinidade, o Partido Comunista Português.
De longe chegavam, entre as malhas da censura, cedidos por mão amiga e vigiada de livreiros, certos autores de uma nova literatura em que aquela parte da população sempre ignorada, o povo trabalhador, irrompia em páginas ardentes de enredos inusitados e renovo estilístico: Steinbeck, Hemingway, John dos Passos, Caldwell, Malraux, Gorky, Ehrenburg, ou, mais próximos, Jorge Amado, Lins do Rego, Graciliano Ramos ou Erico Veríssimo.
Chegavam ecos, já delidos pelo tropel dos acontecimentos, das perseguições a intelectuais italianos e alemães, e da Espanha a execução sumária de Federico Garcia Lorca, num cerro da sua amada Andaluzia, ou da fuga, através dos Pirinéus gelados, com a milícia fascista no encalço, de Jaime Cortesão e outros democratas e suas famílias.
Tudo parecia decidido e a onda totalitária imparável. Nem faltou a fotografia sorridente dos signatários do Pacto de Munique – Mussolini, Hitler, o francês Daladier e o britânico Chamberlain, unidos na mesma cruzada anti-comunista.
Foi, então, neste quadro de incertezas e sombras, sofrimento e dram a, que nasceu, em Portugal, o movimento neo-realista. Como se fora um vento forte, insubmisso, inquieto, que tudo interpela e questiona e a ninguém deixa indiferente. Outras mensagens, outras linguagens, outras vozes, outros rostos, outra gente, irrompem pelas telas dentro, pelas páginas dos livros, pelas partituras, numa torrente criativa, que do ignorado, do pisado, do humilhado e ofendido, do que parecia feio e desprezível, revelou o belo e o humano.
Poderão encontrar-se expressões artísticas do neo-realismo datadas, escolásticas e dotadas de valor estético. Mas o que melhor o define, caracteriza e projecta no tempo é o que resulta da confluência de dois factores: a atitude do artista perante o mundo em que vive e a presença humana na obra de arte.
Compreende-se hoje melhor, sem os preconceitos e simplificações que duraram décadas, a polémica que opôs José Régio e Alvaro Cunhal, nos anos 40.
Álvaro nunca pôs em causa a valia poética do autor de”As Encruzilhadas de Deus”, mas sim a atitude de quem defendia e aconselhava expressamente os artistas a”concentrar os olhos sobre o umbigo”, convidava à indiferença e à renúncia a resistir e a reagir, declarava ser cada”indivíduo o seu único fim” ou a”poesia como um fim em si mesma”(1).
O que estava em causa, sim, era a atitude activa do artista num mundo dominado pela injustiça e a violência, e não que tomasse tal opção através da obra de arte, embora quem o fizesse não devesse, por isso, ser diminuído ou desvalorizado, como era corrente à época, na crítica presencista, para não falar nos epígonos do Regime.
Outra polémica ganhou vulto, a que empolava a dicotomia forma/conteúdo. Em momentos e com autores diferentes se manifestou, exprimindo visões contraditórias.
Em Eduardo Lourenço, por exemplo, ao escrever “ Todas as revoluções são de conteúdo mas em nada ele se traduz com mais imperativa necessidade que na forma e como esta se pode colher com imediata visão é nela que a revolução se lê”(2)
Luís Francisco Rebelo refere”…a forma e o conteúdo, o significado e o significante, constituem uma unidade dialéctica,… e a obra de arte é uma síntese de categorias antitéticas mas não irredutíveis. É mediante a elaboração dessa síntese que a arte pode aceder a uma consciência do real e promover a sua transformação”.(3)
Diria ,mais tarde, Álvaro Cunhal:”A forma é…não a única componente mas um valor-base da criatividade e da arte”(4)
De múltiplos modos tem sido abordada a ligação ente a arte, o artista e a sociedade. André Malraux, no Congresso dos Escritores realizado em Paris, em 1935, afirmou:
”É difícil ser um homem. Mas é mais fácil sê-lo aprofundando a comunhão do que cultivando a diferença”.(5)
José Saramago, em 1978, fez outra síntese: “Ser escritor não é apenas escrever livros, é muito mais uma atitude perante a vida, uma exigência e uma intervenção”(6).
Outra componente do neo-realismo é a mais rica presença humana através do”aparecimento do proletariado rural e urbano pela primeira vez na obra literária como sujeitos e não como objectos de transposição criadora”, como assinalou Mário Sacramento(4).
Se quisermos uma figuração deste surgimento na pintura vejam-se as telas de Abel Salazar e mais tarde de Manuel Ribeiro de Pavia, ou as primeiras telas de Júlio Pomar ,Rogério Ribeiro ou Júlio Resende.
Pela primeira vez, os explorados, os escravos do trabalho, tomavam o primeiro plano. Em rigor, já antes na literatura portuguesa tal acontecera, com Cesário Verde, Fialho de Almeida, Raul Brandão, ou em época mais recente com Aquilino Ribeiro e Ferreira de Castro. Mas a centralidade social chega com o neo-realismo, com autores como Soeiro Pereira Gomes, Fernando Namora, Mário Dionísio, Carlos de Oliveira, entre tantos outros.
Também a mulher surge em primeiro plano, como ser social, e revelam-se grandes escritoras como Matilde Rosa Araújo, Irene Lisboa, Maria Lamas, esta como autora do admirável livro-reportagem”As mulheres do meu País”.
Concluindo, pode dizer-se que o neo-realismo, divulgado, apesar da repressão policial, por inúmeras publicações e por associações populares, é inseparável da luta contra a ditadura pela liberdade , a emancipação social e os valores democráticos, por uma cultura livre e participada, e que nessa luta o Partido Comunista Português, através dos seus militantes, teve um papel decisivo.
Como movimento transcendeu a época em que se iniciou e, em diferentes formas e linguagens, inspirou novas obras de arte de testemunho político e social.
Os escritores e criadores artísticos neo-realistas não foram espectadores passivos do seu tempo, agiram, criaram, lutaram por um mundo melhor, São, para além da beleza e significado das suas obras, que perduram, um exemplo sempre actual.
Jorge Sarabando
(1) " A arte, o artista e a sociedade" de Álvaro Cunhal, pág. 96; Editorial Caminho
(2) "Sentido e forma da poesia neo-realista" de Eduardo Lourenço, pág. 258; Editora Ulisseia
(3) "Fernando Namora" de Mário Sacramento, pág. 69; Editora Arcádia
(4) "O século dos intelectuais" de Michel Winock, pág.265; Editora Terramar
(5) "José Saramago nas suas palavras", pág. 203; Editorial Caminho
(6) citado em "Fernando Namora", pág. 146