25 de Abril
Intervenção de José Luís Borges Coelho no jantar regional de comemoração do 25 de Abril
Depois do repasto comum, a palavra que exprima a razão dele. O verbo que logre por momentos catalizar num mesmo ritmo este pulsar colectivo que é o nosso, amassado de sonho e desengano, de pequenas vitórias mas também de clamorosas derrotas, este pulsar movido pela certeza, que nada foi capaz de abalar, de que a humanidade não tem futuro se não abraçar, mais tarde ou mais cedo, as grandes causas, que nos vêm já da Revolução Francesa, da liberdade, da igualdade, da fraternidade, e que nós formulamos numa expressão muito mais concreta, muito mais avançada, quando colocámos como objectivo da nossa luta o fim da exploração do homem pelo homem.
De Abril se espera que fale, da esperança anunciada desse fim, da noite de breu de que foi madrugada radiosa, daquilo em que o tornaram ou deixámos que o tornassem.
Recuo precisamente 34 anos, mais uns dez/quinze dias, para vos dizer que a ‘coisa’ só podia estar mais que madura. Ostentosamente madura. Se não, como é que um tio que eu tinha, nado e criado no meu Trás-os-Montes profundo, donde raramente saíra, um sujeito que não era o que se pudesse dizer “um político” (vivia duma parca reforma de guarda-fios e do amanho dumas leiras, das quais extraía, entre outras preciosidades, uma ‘pinga’ bem saborosa), sim, como é que esse meu tio me podia ter disparado, por meados de Abril, assim sem mais nem menos: - “olha, Luís, ‘isto’ há-de estar por aí a rebentar (‘isto’ era o modo corrente de designar o regime, também conhecido por ‘a situação’). É o que te digo - obtemperava o meu tio - por esta e mais aquela e mais aqueloutra, ‘isto’ está por um fio”.
E não é que estava?! Escassas duas semanas decorridas, 25!, a explosão que se sabe. Desde que o Sol é Sol, foram como há-de ter havido poucos os dias que se lhe seguiram. Só quem os viveu sabe do que falo. De repente, parecia que um só coração bastava para todo o povo.
“Esta é a madrugada que eu esperava
O dia inicial inteiro e limpo
Onde emergimos da noite e do silêncio
E livres habitamos a substância do tempo”
Assim cantou Sophia esse dia 25 de Abril. A mesma Sophia que antes carpira:
“O velho abutre é sábio e alisa as suas penas
A podridão lhe agrada e seus discursos
Têm o dom de tornar as almas mais pequenas”.
Um longo caminho feito de muitas lutas, de muitos pequenos e grandes sacrifícios, cravejado de exemplares abnegações, iluminado por um sem número de pequenas vitórias – e era uma vitória todas as vezes que um desmando do regime (eram multidão os desmandos do regime) gerava, na consciência, um novo opositor; todas as vezes que um companheiro se fazia um novo camarada; todas as vezes que um camarada se fazia clandestino; todas as vezes que um prisioneiro resistia e, altivo, proclamava, na cara dos esbirros, a beleza sem par dos seus ideais; todas as vezes que, por mor disso, o fechavam no ‘segredo’ ou na ‘solitária’ e ainda aí a luta continuava sem desfalecimento nem lamúria; todas as vezes que, operário a operário, se organizava uma luta, se fazia uma greve; todas as vezes que mão anónima metia numa caixa do correio, ou passava a outra mão, o ‘Àvante’ clandestino, que relatava essa luta; todas as vezes que uma tipografia do Partido trocava as voltas ao cerco da polícia; todas as vezes que ao lápis azul ou vermelho do censor escapava a frase reveladora, o subentendido entre linhas; todas as vezes que o poema saía incendiado e se fazia incendiário; todas as vezes que esse poema se casava com uma música e se transformava numa heróica (Graça, Lopes-Graça, grande camarada Lopes-Graça!), todas as vezes que alguém, sozinho ou em grupo, rompia corajosamente o grande silêncio com essa canção-arma; todas as vezes que do meio de um ‘nacional-cançonetismo’, bafiento e poucochinho, irrompia a balada que se estranhava e depois se entranhava (‘Grândola, vila morena’, 25 de Abril) – um longo caminho fora percorrido para se chegar aí, a esse ‘dia inicial inteiro e limpo’.
Alguns nomes foram bandeira: Virgínia e Lobão; Ruy Luís Gomes e José Morgado; os irmãos Castro, os nossos, Armando e Raul; Óscar Lopes. Oficiantes durante décadas dos nossos rituais de luta e de fraternidade. Poetas: Veiga Leitão, Egipto Gonçalves, Papiniano. Escritores, artistas plásticos, actores, jornalistas. Gente inconformada. Tanta! Só de uma vez vi eu, no Tribunal Plenário, ali à Rua – nem de propósito! – Firmeza, uma colheita fabulosa que o regime, pressuroso, mantinha albergada numa outra rua-também-nem-de-propósito – a do Heroísmo. Lembro-me do Ângelo Veloso, do Óscar Lopes, do Agostinho Neto, do Pedro Ramos de Almeida, do Hernâni Silva, do meu irmão António, gente que mobilizara para a sua defesa personalidades tão irrelevantes quanto o eram alguns dos primeiros dirigentes do MUD e designadamente da sua primeira Comissão Central, Alberto Vilaça, Caldeira Rodrigues, Júlio Pomar, Mário Sacramento, Salgado Zenha, Mário Soares, mas também Lúcio Lara, Antero Abreu, António Neto, David Bernardino, e uma data de escritores, Afonso Duarte, Ferreira de Castro, Alves Redol, João Gaspar Simões, Alexandre O´Neill, Alexandre Cabral, João de Barros, José Cardoso Pires, José Gomes Ferreira, José Rodrigues Miguéis, Luís Veiga Leitão, Manuel Mendes, Manuel Rodrigues Lapa, Papiniano Carlos, Tomaz da Fonseca, Victor Sá, etc., entre muitos, muitos outros.
Finalmente, Abril chegou. Por isso, foi Abril, antes de tudo, a liberdade: a liberdade de expressão, a liberdade de organização política, a liberdade sindical, a liberdade de associação. E como podia a liberdade compactuar com a ignominiosa guerra colonial? Com Abril veio, então, a independência das colónias; a criação de cinco (mais tarde seis) novos estados. Com Abril se conquistaram os direitos sindicais. Com Abril, o direito de reunião e de manifestação; o direito de greve; o direito de negociação colectiva; a constituição de comissões de trabalhadores; a institucionalização do salário mínimo; a generalização do 13º mês; o direito a um mês de férias e respectivo subsídio. Com Abril, a democratização do ensino; a universalização do direito à segurança social e à saúde; a generalização das pensões de reforma e do subsídio de desemprego; o direito à participação, por eleição, em múltiplos órgãos e organismos do Estado. Com Abril, o poder local.
No cerne dessas conquistas, não tenham dúvidas, Camaradas e Amigos, a luta do nosso Partido.
Deixem-me, por isso, que lembre o grande timoneiro dessa luta, deixem-me que traga aqui a memória do Camarada Álvaro Cunhal.
Deixem-me, depois, que lembre também esse que foi o Primeiro-Ministro de quatro governos provisórios, durante os quais se instituíram todas essas conquistas – permitam-me que traga aqui a memória do nosso muito querido Companheiro Vasco!
Abril apresentou-se com um programa. Que programa! Não é difícil vislumbrar nele o reflexo das linhas mestras contidas nas teses aprovadas no último Congresso clandestino do nosso Partido.
Abril até se anunciava ‘a caminho do socialismo’ e nós, comunistas, sonhámos que não viria longe, no termo do processo, o comunismo (de repente, Camaradas, como estas palavras voltam a queimar!).
Abril apontava mesmo, no horizonte, esse grande ideal solidário que é o socialismo. Só que, a páginas tantas, veio um socialista e zás, ‘meteu-o na gaveta’. Um outro, entretanto, aproveitando da maioria absoluta, truca!, atirou com gaveta…
É urgente, meus amigos, dar-lhe o mesmo destino.
Não há uma só das conquistas de Abril – no campo político, no campo económico, no campo social, no campo cultural – que não seja alvo dos entranhados ‘desvelos’ destes senhores que se dizem socialistas. E que desvelos! Não estão fartos de os ouvir?
Se fecham escolas, se esfrangalham a gestão democrática, se de todos os modos insultam os professores é tudo porque nutrem uma desentranhada paixão pela educação;
se fecham maternidades, urgências, centros de saúde, se cortam nas comparticipações, se aumentam as taxas moderadoras é só porque nada há que tenham mais a peito que a saúde pública;
se prolongam a idade da reforma, se cortam nas pensões, é apenas pela defesa intrépida dos direitos adquiridos mais elementares, pela garantia imorredoura da segurança social, do estado social.
Ou seja, sobre tudo o que se diz tudo, estes senhores confabulam uma ideia; desatam, depois, a nutrir uma tremendona duma paixão por ela, só que essa ideia não suporta, nem por mais uma, as pessoas que a supõem. Para a gente de carne e osso, para as pessoas mesmo, a receita infalível, a infalível panaceia está em entregarem-se elas, amorosamente, nos braços do sector privado, que cresce, que lucra chorudamente, que ‘enche regaladamente a mula’.
Privatizar, privatizar, privatizar, é o que está a dar. Essa, a sua peregrina ideia de socialismo.
É neste quadro que, uma vez mais, comemoramos Abril. E temos sobejas razões para isso. Só que, por umas ou por outras, já toda a gente o comemora.
Por um outro 25, por um 25 que carregava todas as sombras de Novembro, a roda desandou. Durante anos os que forcejavam por comemorar Novembro não queriam nada com Abril. Isso foi só até se compenetrarem de que não precisavam de se incomodar com comemorações. Partilhando o Poder, juntos ou em alternância, os triunfadores de Novembro podiam placidamente passar a festejar Abril no formalismo dos rituais de um Estado que não se cansa de o tripudiar.
O mesmo poder económico deixou de pôr objecções. Não está aí, de volta, de novo a refocilar no lucro mais despudorado, a alta finança? Não se reconstituíram em grande os grandes grupos económicos? Não se formaram outros, absolutamente impensáveis antes de Abril? Por que o hão-de então hostilizar?
Querem ver o reverso da medalha? Olhem para a rua. A rua é hoje a casa de milhares. Todos os dias se ouve falar de despedimentos. Que admira que todos os dias se ouça falar de assaltos? Que a criminalidade recrudesça?
É certo: a esperança não pode morrer; mas, mais necessário é o combate.
Deixo-vos com um poema de combate de Armindo Rodrigues:
Ser livre é querer ir e ter um rumo
e ir sem medo,
mesmo que sejam vãos os passos.
É pensar e logo
transformar o fumo
do pensamento em braços.
É não ter pão nem vinho,
só ver portas fechadas e pessoas hostis
e arrancar teimosamente do caminho
sonhos de sol
com fúrias de raiz.
É estar atado, amordaçado, em sangue, exausto
e, mesmo assim,
só de pensar gritar
gritar
e só de pensar ir
ir e chegar ao fim.
Hotel do Porto, 24 de Abril de 2008
José Luís Borges Coelho