o meu (re)conhecimento do mestre
O papel de um professor consiste fundamentalmente em reduzir toda a experiência cultural humana a uma série ordenada de dificuldades crescentes que exercitem e, quanto antes, conduzam o aluno aos problemas do nosso (e, de preferência, e quanto possível) do seu tempo.
Óscar Lopes – Gramática Simbólica do Português (um esboço)
Lisboa: FCG, 1971, p.3
Lembro-me que foi em Outubro de 73, numa das sessões da Oposição Democrática integrada na campanha para a “eleição” da Assembleia Nacional, que conheci pessoalmente Óscar Lopes.
Com um número apreciável de prisões no seu curriculum – recordo-me da sua intervenção em nome da Comissão Nacional de Socorro aos Presos Políticos na sessão comemorativa do 5 de Outubro, no Coliseu – Óscar Lopes era uma das referências obrigatórias da resistência antifascista. Eu tinha vinte e seis anos, tinha regressado da guerra há pouco mais de um ano e iniciava a minha actividade na Oposição, integrado na comissão eleitoral de Gondomar em representação da minha freguesia natal, a Lomba.
Nessa altura eu estava longe de pensar que passados estes anos viria a ser aluno de Óscar lopes. Em boa verdade nem sequer pensava em terminar o sétimo ano do liceu, interrompido pela tropa: uma tentativa de retomar os estudos logo após o regresso de África, onde estivera como sargento miliciano, fora extremamente dolorosa porque eu tinha sido incapaz de estar na mesma sala de aula com miúdos de dezassete ou dezoito anos que não sabiam – como eu sabia – o que os esperava daí a dois ou três anos.
Eu não tinha então a percepção da importância da sua obra no campo da literatura. Sei que mesmo antes da tropa já me tinha servido da História da Literatura Portuguesa, de que é co-autor, mas nessa altura, embora fosse um devorador de livros desde que pelo dedo de meu avô aprendera a juntar as primeiras letras na edição do D.Quixote impressa em corpo 14 que havia lá em casa, o meu ler era pouco mais que juntar as palavras mesmo quando lia o proibisíssimo Quando os Lobos Uivam, de Aquilino. Foi só em África, e na guerra, que soube que havia outros modos de ler. Ter sido mobilizado em rendição individual e colocado numa Companhia local deu-me a possibilidade de contactar não só com soldados moçambicanos, mas também com muitos jovens oficiais que passaram pelos bancos da universidade nos últimos anos da década de 60 e que iam chegando com notícias do que por aqui se passava.
Tão-pouco conhecia o trabalho de Óscar Lopes no campo da linguística, que já então – soube-o mais tarde – era notável. Sabia-o principalmente o intelectual antifascista impedido muitas vezes de colocar o seu nome nos textos que escrevia. Eu trabalhava, desde que regressara de África, no Arquivo da Redacção do Jornal de Notícias e sabia bem que o nome de Óscar Lopes em qualquer papel obrigava a uma ida aos escritórios da Censura, já então chamada eufemisticamente Exame prévio. Podia ser um relato de futebol, mas se fosse assinado por Óscar Lopes tinha de ir à Censura; podia ser uma notícia do tipo Óscar Lopes colheu ontem a primeira camélia desde ano no jardim da sua residência, mas se falasse em Óscar Lopes teria de ir à Censura. Como se sabe – como é preciso que se saiba – Óscar Lopes não foi o único português a ter essa honra, mas foi sem dúvida um dos mais visados. É do domínio público que – como tantos outros – teve de recorrer a vários pseudónimos para passar mesmo textos de crítica literária. Até a sua colaboração, mais ou menos regular durante anos, na página de cultura de O Comércio do Porto só foi autorizada sob o conhecido pseudónimo de Luso do Carmo. Mas para além desse, e sobretudo nos textos de intervenção, Óscar Lopes usou muitos mais, incluindo nomes femininos, como ainda há pouco nos disse durante um dos jantares com os alunos do mestrado de Linguística Portuguesa Descritiva.
Julgo que nem mesmo Óscar Lopes se lembrará de todos os pseudónimos que utilizou para assinar os seus textos e de certeza que não tem cópias de tudo o que escreveu: a casa tinha de se manter limpa porque nunca se sabia quem iria entrar. E se é certo que os textos de crítica literária e de história da literatura estarão, na sua grande maioria, conhecidos – muitos deles fazem parte de recolhas publicadas pelo autor – tenho para mim que seria bom que enquanto é tempo fosse tentada uma recolha dos seus textos de intervenção, publicados em diversos jornais sob os mais diversos pseudónimos. Esses textos, em si mesmos, poderão não ter para a cultura portuguesa a mesma importância dos seus trabalhos de literatura e linguística; mas o seu conhecimento, e sobretudo o conhecimento das condições de produção e de difusão, são necessários para um conhecimento global da obra de Óscar Lopes. É que a busca do (de) sentido em Óscar Lopes não se limitou – não se limita – a incursões cada vez mais profundas e sempre novas, com o rigor e auto-exigência que lhe são reconhecidos, nessa estrutura cheia de contradições que é a obra literária; nem à tentativa de encontrar na semântica formal a clareza que há-de guiar a Razão no caminho da claridade: Óscar Lopes buscou também na análise do real, na militância cívica e política, na resistência antifascista, na luta contra o obscurantismo, os sinais do (de um) sentido que há-de transformar este mundo de vivos comendo vivos.
Abril chegou poucos meses depois desse Outubro. Depois disso muitas vezes me cruzei com Óscar Lopes: umas vezes na rua, lutando por causas comuns; algumas vezes assistindo a colóquios ou conferências em que interveio. Uma ou outra vez teremos trocado algumas palavras, como daquela vez no salão da Câmara de Gondomar – era eu Presidente do Conselho Municipal – onde deu uma conferência sobre Rosalía de Castro por ocasião da recepção aos representantes de Gondomar da Galiza, no âmbito do acordo de geminação que une os dois municípios. Alegrei-me com a sua chegada à Faculdade de Letras do Porto, onde já devia estar há muito tempo, e acompanhei, com um interesse não profissional, a sua produção no campo da literatura. Só mais tarde, já na universidade, é que eu viria a tomar verdadeiro conhecimento dos seus estudos linguísticos.
Ocupado com outras coisas, eu deixara-me passar pelo tempo; e quando, no ano em que fazia quarenta anos, decidi finalmente entrar para a universidade, o Professor Óscar Lopes acabava de ser jubilado e deixava a docência de cadeiras de licenciatura. Mas nem por isso os seus trabalhos deixaram de influenciar de forma determinante o caminho que acabei por tomar na minha formação académica. Foi pela mão da Professora Fátima Oliveira que me apercebi da importância e do pioneirismo dos estudos linguísticos de Óscar Lopes. A leitura da sua Gramática Simbólica do Português entusiasmou-me: lembrava-me das turmas piloto – acho que era assim que eram chamadas – em que no meu tempo de aluno no Liceu Alexandre Herculano se iniciava o estudo das matemáticas modernas. Olhando para a sua bibliografia, eu verificava que mais ou menos na mesma altura já Óscar Lopes defendia a utilização de Matemática no ensino do Português. Agora, com filhos quase da idade dos meus colegas de carteira e tendo – mais do que eles – consciência da situação das duas disciplinas, eu não podia deixar de me admirar por o caminho aberto pelo esboço de Óscar Lopes não ter sido explorado. E ainda me admiro. Julgo que valia a pena tentar prosseguir o seu trabalho.
Quando surgiu a oportunidade de frequentar o Mestrado da Linguística Portuguesa Descritiva, a possibilidade de vir a ser aluno do Professor Óscar Lopes influenciou a escolha da variante por que optei, as correntes modernas da linguística, tal como, mais tarde, a escolha da área em que estou a preparar a minha dissertação – a semântica formal.
Não sei se serei a pessoa mais indicada para falar como aluno do Professor Óscar Lopes: porque mesmo antes de ser seu aluno eu já era seu admirador, o que, por certo, influenciou as condições de recepção e porque o conhecimento do mundo, necessariamente diferente do dos meus jovens colegas, me permitiu fazer comparações que eles, mais novos, não estavam em condições de fazer. Muitas vezes, na universidade e fora dela, presenciei ostentações bacocas de sapiência. Às vezes, a sapiência nem era assim tanta; outras vezes, não deixando de o ser, a sua ostentação não deixava de ser bacoca. Não raro assisti a conferências e a aulas em que foram fornecidas ex cathedra informações controversas como se de verdade absoluta se tratassem. Nunca senti isso ao ouvir Óscar Lopes. Antes de ser seu aluno, a sensação que me ficava ao escutar as suas intervenções era que estava perante alguém que tentava acima de tudo partilhar; alguém que dava prioridade ao diálogo, à troca dialéctica de opiniões. Não nego que por vezes me senti pequenino perante a facilidade com que saltava da linguística ou da literatura para os mais diversos campos da experiência cultural humana. Mas de nenhuma vez me senti humilhado por não saber. Mais: frequentamente ficava com a ideia de estar perante alguém extremamente modesto, que prefere passar despercebido e que quase pede desculpa por saber e por não ter possibilidades de partilhar ainda mais todo esse saber.
Mas foi como seu aluno, nos seminários de Pragmática Linguística, que pude verificar como a sua ideia de partilha, de diálogo, implica dar importância a cada uma das contribuições dos seus alunos, por mais simples que sejam, por mais irrelevantes que pareçam. Nas aulas ou em sua casa, onde tantas vezes recebe os seus alunos, sempre o vi pronto a acompanhar a exploração de um caminho - ...a metáfora? Pois sim senhor, pode ver, por exemplo, Ricoeur. Cuidado com a tradução; eu empresto-lhe o texto original. Leve também a “Semiótica...” do Umberto Eco, para uma visão diferente...; - ou a alertar para pormenores – tenha em conta as condições em que “A Capital” foi publicada. E mesmo quando o ouvido teima em não colaborar, não deixa de estar atento e comentar mesmo aspectos fonéticos – Como é que o Joaquim diz “mestrado”?... deve estar a verificar-se uma redução...
Acho que não estou a dizer nada de novo. Muitas vezes ouvi já falar da simpatia, do carinho, da tolerância com que o Professor Óscar Lopes trata os seus alunos; com que Óscar Lopes trata os amigos e mesmo os adversários. Mas ainda que não seja novo, o meu testemunho aqui fica, preto no branco, para que conste...
E que conste também que é para mim uma honra ter tido o privilégio de ser aluno do Professor Óscar Lopes.
Obrigado Professor!
1996