SINTEL
Abril certo, na hora incerta
Estamos aqui hoje, em primeiro lugar, para celebrar Abril.
Somos, os que aqui estamos, de gerações muito diferentes. Uns conheceram bem o que foi o fascismo de Salazar e Marcello Caetano, o fascismo dos grupos económicos, dos monopólios, das famílias Espírito Santo, Mello, Champalimaud, Pinto de Magalhães e outras, e dos grandes senhores da terra, todos esses cujos interesses a ditadura representou e defendeu. (E, já agora, notem como várias dessas famílias e os seus “dignos” sucessores continuam a encontrar, hoje, terreno fértil para a negociata, para impor a sua lógica sem freio que é a da exploração e do lucro.)
Muitos de nós conheceram a Censura, as perseguições e a repressão da PIDE, a realidade da Guerra Colonial – essa espada de Dâmocles sobre a cabeça da minha geração e de outras anteriores à minha –, a mordaça que impedia o exercício das liberdades (de expressão e de imprensa, de associação, de criação de partidos e outras), bem como o exercício dos direitos mais elementares: o direito ao sufrágio eleitoral, à greve, à constituição de sindicatos democráticos e de comissões de trabalhadores, o direito legal à saúde, à educação, ao subsídio de desemprego, à igualdade de direitos entre homens e mulheres e muitos outros.
Por tudo isto, esses mesmos viveram também, apaixonadamente, os levantados dias da Revolução de Abril e dos quase dois anos que se lhe seguiram. Uma Revolução que esteve longe de ser um simples movimento de capitães, animados de ideais democráticos e conscientes do absurdo da Guerra Colonial. Uma Revolução que foi, isso sim, um gradual, por vezes duro e contraditório – mas sempre exaltante – processo revolucionário. Um combate pelo aprofundamento das liberdades, pela conquista de direitos sociais e políticos fundamentais, que desaguaria na Constituição de 1976. Um processo – importa lembrá-lo – cujos protagonistas foram os trabalhadores, os camponeses, os estudantes e os intelectuais, os soldados progressistas, as massas populares em luta. Um tempo em que, como escreveu Sophia, “a poesia desceu à rua” e o sonho se transformou em vida.
É essa Constituição de 76 que hoje continua a reger a nossa vida colectiva, pesem embora as várias revisões constitucionais que a desfiguraram, por efeito de iniciativas do PS, do PSD e do CDS. Apesar de tudo, essa Constituição, em tantos aspectos desrespeitada por governos que assanhadamente promoveram uma política de direita (como o actual) e pelos sucessivos presidentes da República oriundos do PS ou do PSD, continua a ser um garante essencial da coxa democracia em que vivemos. E, por isso, importa defendê-la, pugnar pelo respeito pelos princípios generosos que ainda a enformam e que novas investidas políticas – venham elas do PSD de Passos Coelho e de Cavaco Silva ou de qualquer outro reduto político da burguesia, de fachada “socialista” – vêm uma vez mais pôr em causa.
Outros dos que aqui estão já não conheceram os negros anos do fascismo, nem os dias exaltantes da Revolução. Mas estão aqui porque são continuadores de Abril, conscientes do muito que falta cumprir de tudo o que Abril prometeu. Conscientes dos direitos sociais entretanto perdidos e das ameaças à liberdade.
E esses conhecem bem a realidade do desemprego e da precariedade laboral; sabem que o Norte – em particular, este distrito do Porto – é actualmente a região mais deprimida do país e uma das mais pobres e deprimidas da Europa. Sabem que as desigualdades sociais e económicas se agravaram como nunca neste país de Abril. Sabem bem que os trabalhadores intelectuais são vítimas de um processo acelerado de proletarização e sentem na carne os efeitos da precariedade e dos ataques aos direitos do trabalho. Sabem bem como se encontram por cumprir o desígnio da democracia cultural, a existência de um estatuto sócio-profissional digno para os artistas. Conhecem como ninguém o gradual esvaziamento das políticas na área da Cultura, submetidas às sacrossantas leis do mercado, a uma visão economicista e elitista, e testemunham o silenciamento dos agentes culturais nesta cidade e noutras. Conhecem as realidades do conluio e da corrupção aos mais altos níveis do poder económico e de um poder político em que – como alguém recentemente disse – a única diferença existente entre PSD e PS é que um tem um D e o outro não. Conhecem bem a crise económica em que nos mergulharam o grande capital financeiro nacional, internacional e os directórios de Bruxelas, estribados, no nosso país, nas políticas de direita do PS, do PSD, do CDS. Conhecem bem o que é a Justiça de classe. Conhecem bem os efeitos perversos do culto do individualismo, da aceitação passiva desta “apagada e vil tristeza”, das tentativas de rasura da memória e de branqueamento dos crimes do fascismo. E testemunham, 36 anos depois de Abril, os sucessivos ataques aos direitos sociais (reformas, trabalho, saúde, educação…), às garantias e liberdades, designadamente à liberdade de expressão, de informação, de contestação e de protesto.
Por tudo isto estão aqui, precisamente no dia em que se comemora o Dia Mundial do Livro e dos Direitos de Autor. Como quem perpetua o legado de Fernando Lopes-Graça, Manuel Ribeiro de Pavia, José Dias Coelho, Torga, Soeiro Pereira Gomes, Alves Redol, Armindo Rodrigues, Joaquim Namorado, João José Cochofel, Carlos de Oliveira, José Gomes Ferreira, Manuel da Fonseca, Sidónio Muralha, Mário Dionísio, Luís Veiga Leitão, Egito Gonçalves, Mário Cesariny de Vasconcelos, Mário-Henrique Leiria, Sophia, Jorge de Sena, Ary dos Santos, Papiniano Carlos e tantos outros. E estão aqui porque não se resignam e porque sentem que é necessário, mais do que nunca, continuar Abril. Por isso, também, o PCP aqui está, como sempre esteve, ao lado desses que não renunciam à luta e à palavra livre, ao lado dos que sabem que é urgente prosseguir, mudar de vida, prolongar Abril em Maio e nos tempos difíceis que estão para vir. E porque a Arte e a Cultura, bem o sabemos, guardam em si um indeclinável anseio de transformação social.
Por tudo isto, o Sector Intelectual do Porto toma a iniciativa de abrir, como já o fez e continuará a fazer, um fraterno espaço de liberdade a escritores, artistas, jovens investigadores e universitários que não se vergam. E não são poucos: Anthero Monteiro, Augusto Baptista, Bruno Monteiro, César Príncipe, Emílio Remelhe, Francisco Duarte Mangas, João Manuel Ribeiro, João Pedro Mésseder, Jorge Ribeiro, José Soares Martins, José Viale Moutinho, Miguel Ramalhete Gomes, Nuno Higino, Óscar Lopes, Pedro Ferreira, Rui Pereira, Teresa Marques, Vergílio Alberto Vieira, os jovens designers que colaboraram neste livro e o pintor Roberto Machado, que dá cor e forma à nossa inquietação e aos nossos sonhos. Alguns, apenas, dos muitos que poderiam proclamar, como nós, Abril Certo na Hora Incerta, como diz o título da publicação que aqui apresentamos, elevando à categoria de consigna uma frase do texto de Óscar Lopes – figura maior da intelectualidade portuguesa, figura exemplar da militância cívica e política em prol da liberdade e da democracia, da justiça social e da cultura; exemplo a seguir de militância antifascista, comunista, de intelectual que nunca se resignou perante a adversidade, a repressão, a injustiça social, e sempre rejeitou o individualismo, buscando a unidade democrática contra as forças da opressão.
Aqui encontrarão, amigos e camaradas, textos e imagens de outros que também não se resignam, e que querem fazer ouvir, através da palavra e da pintura, as suas vozes insubmissas, irónicas e indignadas, criadoras de indomável beleza e pensamento crítico em liberdade: poesia, narrativas, evocações, aforismos, textos de análise e reflexão, textos para os dias por vir.
À generosidade de todos (e à da direcção da Associação dos Jornalistas e Homens de Letras do Porto, centenária casa de Abril, da Cultura, da intervenção cívica que hoje nos acolhe), a essa generosidade está profundamente grato o Sector Intelectual do Porto do PCP – um partido que acredita no potencial transformador da Arte, da Cultura e intransigentemente defende a liberdade e diversidade da criação artística.
Viva a liberdade! Viva o 25 de Abril! 25 de Abril sempre!