Um bilhete para o Zezito

Augusto Baptista

Zezito,
Tardei em escrever-te estas linhas e me pergunto se agora farão sentido, anos volvidos sobre os nossos encontros. Decidi-me e aqui vão. As acções imperativas, vendo bem, é sempre tempo delas.

O que aqui me traz é agradecer-te o modo como me acolheste sempre que te fui ver à Azinhaga, teu torrão natal, aonde, como dizias, mais tarde voltaste para acabar de nascer. E como foi bom nesses dias acompanhar a tua vida no casulo do Casalinho, junto aos teus avós, Josefa e Jerónimo, sempre tolerantes, cordiais, amigos.

Levados pelas crianças que fomos, percorremos o teu chão primordial, espalmado entre os rios Almonda e Tejo, com freixos, choupos e salgueiros. E horizontes de oliveiras velhas, mais tarde transformados – para desgosto nosso – em milheirais ordenados como exércitos em parada.

Recordo o entusiasmo e a insensatez, já te dizia então, com que trepavas à ponta do freixo e a coragem atrevida com que andavas aos figos, eu em baixo, eu transido, eu a lembrar-te que figueira é alma do Demo, nos seus braços quebradiços penderam para a tumba muitos atrevidos feitos tu.

E, curioso, o que eu em ti apreciava não era o destemor, a ousadia, era a detença com que tudo observavas, a serenidade. Ainda hoje guardo memória do teu jeito de contemplar as teias de aranha ornadas de pérolas de orvalho pela manhã, como te perdias no voo planado das rapinas, a atenção que davas ao silêncio da água, ao cantar dos grilos, a mestria com que os desluravas com a palheirinha, o espanto que te causava a redondez dos bichinhos-de-conta, fechados sobre si, quando acossados.

Já essa mania de dizimares com fisga as rãs do Almonda era uma malfeitoria que me incomodava e não casava com a tua boa índole.

Admirável era o desvelo, o empenho e a mestria com que ajudavas o teu avô na criação dos porcos, o desembaraço com que zelavas pela harmonia nas pocilgas, conduzindo à mama certa o bácoro dela extraviado.

E guardo memória, fica a saber, da ternura com que os teus avós tratavam os bacorinhos mais enfezados e friorentos acabados de nascer, nas noites gélidas a lavarem-lhes os pezitos e a dormirem com eles no aconchego da cama. Que boas almas!

Antes de me ir, queria só dizer-te quanto recordo aquela vez em que, com o teu primo José Diniz, andámos os três na seara em cima da grade da ceifeira, sujeitos a cair, a ver cortar as espigas.
E a enchermo-nos de pó da cabeça aos pés.

E do teu avô, e do teu avô, amigo meu, estranha imagem às vezes me sobressalta: vejo-o a atravessar o tempo, a pressentir a morte, a despedir-se das árvores do quintal, a abraçá-las num
derradeiro adeus; vejo-o emergir até nós e os três nos demorarmos num abraço bom. Para depois partirmos, cada um cumprindo o seu destino.
Aqui chegado, em hora de abalada, te quero confessar, Zezito, que o discorrer deste bilhete eu não sei se está assente na razão vivida, se na razão sonhada. Razões gémeas que podem conduzir, como aqui está inscrito, ao mesmo resultado.

Porto, Agosto de 2022