Intervenção de Jerónimo de Sousa, Secretário-Geral, Sessão Pública evocativa do 103º aniversário do nascimento de Álvaro Cunhal
Associamo-nos hoje, aqui no Porto, para evocar homenageando a figura ímpar de Álvaro Cunhal no dia da passagem de mais um aniversário do seu nascimento e, a partir do valioso e multifacetado legado de dirigente político experimentado e ideólogo com uma intervenção marcante na vida contemporânea nacional e internacional, trazer a debate um problema que assume uma crescente actualidade na vida nacional - o da procura e concretização dos caminhos do reforço e ampliação da convergência e unidade dos democratas e patriotas em defesa da liberdade, democracia e soberania nacional.
Uma procura que se mantém como uma constante da actividade do PCP e que atravessa as mais diversas fases da vida política nacional e se traduz numa política de unidade diversificada que se alicerça na sólida política de alianças do PCP, fundada na identidade objectiva de interesses e aspirações de todas as classes e camadas antimonopolistas, como o evidenciaram oradores que me precederam e que está presente nas análises e produção teórica de Álvaro Cunhal, de onde emana uma capacidade de perscrutar o futuro que nos continua a impressionar pela sua identificação com a realidade dos nossos dias, nomeadamente aquelas que contribuíram para a compreensão dos perigos que ameaçam Portugal como nação, em consequência da política de direita e da submissão das classes dominantes aos interesses estrangeiros.
Bastaria olhar para os seus últimos escritos para verificar como permanecem actuais as grandes linhas do seu pensamento e como continuam a ser um instrumento importante e base de partida para análise dos novos fenómenos e novos acontecimentos da vida nacional e internacional dos últimos anos, nomeadamente em relação à evolução do processo de integração capitalista na União Europeia, à marcha da globalização imperialista que impõe e reserva ao espaço nacional um papel crescentemente secundário, subalterno e vazio de decisão soberana e democrática dos povos, ao acentuar da natureza exploradora, opressora, parasitária e agressiva do sistema capitalista, com o aprofundamento da sua crise estrutural à qual está associada uma brutal ofensiva visando fazer retroceder e liquidar conquistas e direitos alcançados pelos trabalhadores e pelos povos ao longo do século XX.
Mas de relevo, pela sua importância e consequências imediatas para o desenvolvimento do País e a sua soberania, são as suas análises e previsões sobre as consequências da adesão de Portugal à CEE e do consequente processo de integração. Um processo comandado pelo grandes grupos económicos nacionais e estrangeiros e em larga medida determinado pelo objectivo da restauração do capitalismo monopolista, que conduziu o País pelos caminhos da submissão nacional.
Problema este – o da submissão - que tem sido uma constante na trajectória da vida nacional, como amiúdas vezes o evidenciou Álvaro Cunhal, ao mostrar que, historicamente, as classes dominantes aliam-se ao estrangeiro para impor o seu domínio e garantir os seus privilégios. Uma visão que transporta para a actualidade e que ficou expressa com muita nitidez na sua obra sobre a Revolução de 1383-1385 quando afirmava “Política de traição nacional – tal foi no século XIV a política da nobreza territorial contra o movimento revolucionário ascendente da burguesia como hoje é a política da burguesia monopolista” (…) “capaz de vender a independência do país em troca de um auxílio estrangeiro para se manter no Poder”.
A mesma visão que o levava afirmar que é a classe operária, são as massas trabalhadoras que hoje protagonizam a defesa dos interesses e da soberania nacional. São eles os herdeiros desse povo de que falava Fernão Lopes. Desse povo que foi capaz de expulsar todos os invasores e em todos os tempos, o mesmo povo que se indignou e revoltou para repudiar o ultimato da grande potência inglesa em 1891, aqui na cidade do Porto!
Submissão que se aprofunda e que assume uma particular agudeza nestes últimos anos com a evolução do processo de integração na União Europeia, de onde sobressai com cada vez mais nitidez o carácter de classe que o determina e em que o crescente domínio dos monopólios associados ao imperialismo se tornou um perigo para o próprio regime democrático.
Uma evolução marcada pelo acelerado aprofundamento do seu rumo neoliberal, federalista e militarista que nestes anos mais recentes conheceu um novo impulso com a União Económica e Monetária e o Euro, mas também com o desenvolvimento de novos instrumentos de domínio político e económico – como são a governação económica, o semestre europeu ou o chamado Tratado Orçamental – e que no seu conjunto visam criar um quadro de constrangimento absoluto a qualquer projecto de desenvolvimento próprio, autónomo e soberano de países como Portugal.
Uma realidade insustentável como cada vez mais portugueses o reconhecem e que vêem nesta evolução posto em causa o inalienável direito do nosso povo de decidir do seu próprio destino e de ver assegurada a prevalência dos interesses nacionais.
Uma situação que tem conduzido o País ao retrocesso económico e à degradação social, patentes no afundamento da capacidade produtiva do País, na destruição dos seus sectores produtivos, nos altos níveis de desemprego, no aumento inconsiderado das dívidas privada e pública, no aumento da exploração do trabalho e das desigualdades que nos tornam um País cada vez mais frágil e dependente.
Uma realidade insustentável que se impõe por práticas governativas continuadas à revelia da Constituição da República Portuguesa e do projecto de desenvolvimento e de soberania que ela comporta.
Soberania que é pertença do povo e não de Bruxelas e que o brio patriótico dos portugueses não aceita ver expropriado em nenhuma circunstância. Soberania que não pode ser tornada irrelevante em nome de invocados compromissos internacionais ou esvaziada por sistemáticas cedências de cada vez mais relevantes parcelas do seu conteúdo para espaços de decisão que fogem ao controlo dos portugueses.
Álvaro Cunhal, analisando a tendência verificada em países menos desenvolvidos e sujeitos a um crescente domínio e subordinação aos interesses do estrangeiro e do imperialismo, antevia, indo ao encontro de uma sua afirmação já aqui citada, a previsível influência dos factores externos, num quadro de submissão aos interesses do grande capital transnacional, como o que temos vivido no País, na rearrumação das forças sociais e políticas, capazes de ampliar com novos actores a frente das duas alianças básicas antimonopolistas que definem hoje a política de alianças do PCP – a aliança da classe operária com o campesinato – pequenos e médios agricultores – e a aliança da classe operária com os intelectuais e outras camadas intermédias, dando corpo, com o nosso empenhamento, a uma vasta frente social que abrange a larga maioria da população portuguesa.
É uma evidência que essa possibilidade está longe de ter correspondência no plano político, mas é um facto que tais factores estão a alargar o âmbito da frente social de luta que precisamos de continuar a ampliar, trazendo novos sectores para o campo da política patriótica e de esquerda – o campo das forças sociais e políticas antimonopolistas, o único campo que está em condições de assegurar uma alternativa, capaz de libertar o País da submissão e do enfeudamento aos interesses estrangeiros e do capital transnacional.
Tarefa imperativa como o evidencia a evolução da nova fase da situação política nacional decorrente das eleições legislativas do ano passado e da derrota do governo do PSD/CDS.
Evidente na sistemática ingerência externa na vida do País, traduzida em inaceitáveis pressões, manobras e chantagens da União Europeia e do seu directório comandado pela Alemanha, do BCE e FMI e de outros representantes do grande capital transnacional com o objectivo de fazer valer as suas exigências e submeter o País aos seus ditames. Mas também nas limitações e insuficiências de um governo que resiste a libertar-se das imposições europeias, do Euro, do domínio do capital monopolista e de outros constrangimentos que comprometem a resposta que o País precisa para afirmar o seu desenvolvimento soberano.
Constrangimentos que determinam as suas opções e a sua política em vários domínios, nomeadamente na resposta aos problemas da banca, dos serviços públicos, do desenvolvimento das actividades produtivas e que continuam a condicionar o crescimento económico e do emprego.
Condicionamentos que marcam a proposta de Orçamento do Estado do governo do PS para o próximo ano e em discussão, nomeadamente no plano fiscal, onde prevalece a resistência da adequada tributação sobre os lucros e dividendos do grande capital e da especulação, e a adopção de metas orçamentais associadas às exigências da União Europeia e dos seus instrumentos de dominação económica e orçamental.
Uma proposta de Orçamento que contém em si o conjunto de contradições do actual quadro político.
Uma proposta com avanços e medidas positivas que não podem ser desvalorizados, mas também com insuficiências e limitações. Proposta onde se combinam orientações e medidas que dão resposta a prementes problemas dos trabalhadores e de outras camadas da população, designadamente propostas com origem na iniciativa ou com contribuição do PCP, com outras negativas, ao mesmo tempo que se adiam medidas de reposição de direitos e rendimentos que era necessário e possível concretizar e que o PCP, no decorrer do debate na especialidade, não deixará de considerar com vista a anular ou limitar as suas insuficiências.
Sem menorizar o que se conseguiu nesta nova fase e com a solução encontrada, mas também o que impediu se PSD e CDS prosseguissem a sua acção no governo e não foi pouco, toda a actual situação revela, como o PCP tem sublinhado, que a questão que continua colocada na actual fase da vida política nacional é a da escolha entre enfrentar os constrangimentos e chantagens do grande capital e da União Europeia e afirmar uma política alternativa em ruptura com a política de direita e de submissão nacional ou ficar paralisado ou limitado na resposta às necessidades de desenvolvimento do País, aos problemas e aspirações do povo português.
Uma escolha, uma opção, que surgirá a favor do povo, do País e do seu desenvolvimento tanto mais cedo, quanto mais ampla a frente de luta da classe operária e de todos os trabalhadores e sectores sociais antimonopolistas, de todos os atingidos pela política de direita, e sólida for a sua aliança fundada na identidade objectiva de interesses e aspirações, e o seu mútuo reconhecimento, quanto mais larga for a unidade e convergência dos democratas e patriotas que assumem como condição indispensável à construção de outro rumo para o País, a ruptura com a política de direita e a construção de uma alternativa patriótica e de esquerda.
Unidade e convergência que tem como condição primeira, a própria unidade da classe operária, construída na luta por interesses concretos e imediatos dos trabalhadores. Essa unidade e luta que foi sempre a mola propulsora da construção de mais amplas unidades, como o confirmam anos de experiência e luta do PCP pela liberdade e a democracia.
Condição primeira na criação da qual Álvaro Cunhal, desde muito cedo, se empenhou com o estudo atento e rigoroso das condições de vida e de trabalho das classes laboriosas, à sua luta e à luta e reforço das suas organizações.
Desde logo a contribuição particular dada por Álvaro Cunhal no aprofundamento e concretização das orientações do PCP e da intervenção dos comunistas portugueses que, desde os finais dos anos vinte do século passado e com Bento Gonçalves, trabalhavam na dinamização de um movimento sindical verdadeiramente de classe.
Uma contribuição de grande originalidade de resposta à especificidade da situação portuguesa, quer na via escolhida da intervenção do movimento operário no plano sindical com o abandono dos sindicatos clandestinos e a participação nos sindicatos nacionais, quer no plano das soluções para garantir a unidade da classe operária e que haveria de influenciar e determinar as características únicas que apresenta o movimento sindical unitário português e que permitiu que a classe operária se tivesse transformado na vanguarda da luta de resistência antifascista, criado as condições para o surgimento da Intersindical, em 1970, e esta tivesse desempenhado o papel que desempenhou nos grandes movimentos de massas e o papel de relevo que assumiu no processo revolucionário de Abril e que hoje permanece como o grande baluarte dos trabalhadores portugueses, e a mais importante e combativa organização social do País.
Foi esta acertada e original orientação, juntamente com a iniciativa directa do próprio Partido nas empresas e nos campos, através do apoio e dinamização das comissões de unidade que possibilitou levar a cabo grandes lutas de massas, como foram as que ocorreram logo na primeira metade da década de quarenta, mesmo num quadro de grande repressão.
Estar onde estão as massas e trabalhar e aprender com elas, e com elas agir na defesa dos seus interesses, era a palavra de ordem que então se impunha concretizar, e que assumia uma nova dimensão e exigência no quadro da luta mais geral da resistência antifascista, dando expressão à realização da estratégia da frente única da classe operária, componente determinante da frente única antifascista.
Tarefa em que Álvaro Cunhal se envolveu, nalguns casos com uma intervenção directa. Assim foi na criação e organização de amplos movimentos unitários políticos e sociais nos quais o PCP contribuiu para se afirmarem e desenvolverem que vão em períodos diversos do MUNAF ao MUD, do Movimento Nacional Democrático à Frente Patriótica de Libertação Nacional, das Comissões Democráticas Eleitorais à realização dos Congressos da Oposição Democrática no quadro dos quais se travaram importantes batalhas políticas e eleitorais visando a criação de condições para o derrube da ditadura fascista. Mas igual empenhamento no esforço para unir os democratas, os patriotas, as forças e organizações sociais na defesa do regime democrático e das grandes conquistas de Abril e na procura da concretização de uma alternativa ao rumo de destruição, subversão e mutilação das suas conquistas e do próprio regime democrático.
Tal como no passado, é na torrente das pequenas e grandes lutas dos trabalhadores e de todas as classes e camadas antimonopolistas, que se pode hoje encontrar o caminho para ultrapassar a actual situação que vivemos, porque como afirmava Álvaro Cunhal "a situação económica e a vida política portuguesa não se decide apenas nas altas esferas. Na vida política e na vida económica intervêm directamente os trabalhadores, intervêm directamente as massas populares e há uma verdade que, hoje como sempre, continua válida: a de que é o povo, são as massas populares, a força motora da história. A última palavra na vida das nações acaba sempre por ser ditada pelas massas populares".
Foi o desenvolvimento da luta popular de massas e o fortalecimento do movimento operário e dos trabalhadores a base fundamental da unidade democrática anti-fascista no passado, e que é hoje também um firme pilar da convergência e unidade dos democratas e patriotas pela ruptura com a política de direita, e por uma verdadeira alternativa respeitadora da Constituição da República e do seu projecto de desenvolvimento, liberto da submissão e da dependência externas.
Verdadeira alternativa que será expressão e surgirá da confluência da acção, intervenção convergente das organizações e movimentos de massas dos trabalhadores e camadas antimonopolistas, de personalidades e sectores democráticos, mas que tem no alargamento da influência do PCP um factor incontornável na criação das condições da sua concretização.
É na concretização desse objectivo que o PCP está empenhado e que emprega profundamente as suas energias, trabalhando para unir na luta as diversas classes e camadas antimonopolistas pelas suas aspirações e direitos, pelo reforço das suas organizações e movimentos unitários, e da sua intervenção em defesa dos seus interesses específicos, no desenvolvimento da convergência, diálogo e acção comuns abrangendo o conjunto de camadas e sectores de opinião democrática.
Convergência e acção comuns construídas na base de um diálogo sério e leal, com propósitos claros e não dissimulados, criadores de falsas expectativas e falsas alternativas, que comporte uma efectiva vontade de ruptura com a política de direita; convergência e acção comuns construídas na recusa de quaisquer perspectivas sectárias e pretensões hegemónicas, respeito pelas naturais diferenças e recusa de marginalizações.
É com esses propósitos que projectamos a nossa política de unidade e acção comum com outras pessoas e sectores democráticos, bem como o contacto com organizações, estruturas e instituições que, na actual fase da vida política, têm na CDU, nesse amplo espaço de debate, participação e intervenção democrática, onde participam milhares de outros democratas independentes, apoiantes e eleitos e se desenvolvem consistentes relações de cooperação entre o PCP e o Partido Ecologista “Os Verdes” e a associação Intervenção Democrática um espaço privilegiado de convergência, acção e luta. Espaço com capacidade de se afirmar como uma importante componente aglutinadora de democratas e patriotas empenhados na construção dos caminhos que conduzam à concretização da alternativa patriótica e de esquerda que Portugal precisa.
Neste dia de aniversário do nascimento de Álvaro Cunhal cujo o exemplo de vida, luta e obra continuam a ser fonte de optimismo e confiança, e um incentivo para quem luta e acredita na força criadora e libertadora dos homens e dos povos, mais uma vez reafirmamos que é possível assegurar um projecto de desenvolvimento ao serviço do País e do povo, certos não apenas que existem em Portugal forças capazes para resgatar o País da dependência e da submissão, mas profundamente convictos que, tal como noutros momentos do nosso passado secular, o nosso povo com a sua luta saberá assegurar para si um futuro de liberdade, democracia, progresso social e paz.
Neste dia de aniversário do seu nascimento e honrando a sua memória, mais uma vez reafirmamos a nossa inquebrantável determinação de continuar a perseguir aquele sonho milenar pela materialização do qual Álvaro Cunhal entregou toda uma vida de combatente revolucionário – o sonho da construção de uma sociedade liberta da exploração do homem por outro homem.