Aflita, mas com modos gentis…

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Alfredo Maia

     Esqueces a bofetada de veres que te rejeitam
     o fruto do teu trabalho

     José Saramago, A Caverna

 

Aflita, mas com modos gentis, a rapariga implorou “Só um, só um, por favor!”. Era tarde de distribuição de propaganda no grande shopping e a nossa brigada irrompia com entusiasmo pelas lojas, oferecendo os documentos da campanha.

Nalgumas, os empregados recebiam-nos com certa hostilidade, procurando barrar-nos a passagem. Noutras, tomados de surpresa pela “invasão”, ora aceitavam discretamente os panfletos sem conseguirem dissimular um esgar de inquietação, ora reagiam com modos agrestes, forçando-nos a abreviar a permanência.

Com uma serenidade inesperada, a rapariga baixou a voz, olhou-me nos olhos como quem se prepara para fazer uma
comunicação imperativa e disse num tom suave “Por favor não entrem todos, basta um. Pode entregar os papéis que quiser
a quem aceitar, claro. Eu própria gostaria de ficar com um”. Ofereci-lho de imediato, buscando-lhe no olhar claro uma explicação.

“É por causa do controlo das entradas na loja, que não batem com a conversão.” Discretamente, apontou-me os sensores
nos pórticos no limiar do estabelecimento. O que queria dizer-me é que uma parte dos salários dos trabalhadores de
certas redes de lojas depende da relação entre o número de pessoas que entram e o número das que adquirem algo – a
“conversão” da afluência em vendas.

Ocorre-me este episódio quando observo o deambular ocioso da “clientela” pelas lojas de centros comerciais, desconhecendo que sua displicência é um instrumento – involuntário é certo! – para sonegar a retribuição justa dos trabalhadores e a que requintes de malvadez chega o capitalismo.