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Joana Machado [*] O recente acórdão do Supremo Tribunal de Justiça acerca da perpetração de maus-tratos por uma funcionária de um lar de jovens portadores de deficiência veio causar muita celeuma, mas veio igualmente levantar um conjunto de questões importantes. Sem querer questionar a legitimidade da decisão judicial daquele órgão e não querendo, em momento algum, defender o indefensável, pensamos ser importante discutir aqui, ainda que de forma sucinta, algumas perspectivas dominantes de educação das crianças. A tirania da “liberdade incondicional” e da ausência de limites bem definidos, que aparece hoje com um rótulo politicamente correcto e progressista, mais não tem contribuído senão para a desestruturação da identidade das crianças e jovens. Dizer não a uma criança, obrigar as crianças e adolescentes a fazer determinadas coisas, dar um estalo ou umas palmadas no rabo em determinados momentos, tudo isto é perspectivado – e aliás veiculado por algumas entidades, como é o caso dos órgãos de comunicação social – como maus-tratos, violência e como uma forma abominável de educar as crianças. Na verdade, subjaz a estas perspectivas uma extrema permissividade, que apenas tem servido para o desenvolvimento de uma fraca tolerância à frustração, em nada servindo o desenvolvimento de competências sociais de relacionamento com o outro, a capacidade de adquirir disciplina para definir objectivos e empreender projectos de vida ou a capacidade de ouvir e aceitar a crítica. A progressiva perda de autoridade dos principais agentes de socialização, sejam eles pais ou professores, registada nas últimas décadas, não pode, pois, ser dissociada das determinantes transformações infra-estruturais entretanto ocorridas, geradoras de uma avassaladora instabilidade económica e social, instabilidade esta que assume consequências perversas para a construção de um equilíbrio psíquico e de uma identidade social positiva. Assistimos, portanto, a comportamentos cada vez mais pautados por uma agressividade extrema, ao agravamento do fenómeno do insucesso escolar, ao aumento do consumo de psicotrópicos ou à ausência de projectos de vida. O acórdão do Supremo Tribunal de Justiça e o debate gerado à sua volta levantam também outra questão importantíssima que não podemos aqui deixar de discutir. Trata-se da questão relativa ao funcionamento de uma grande parte das instituições sociais, sejam elas lares de crianças e jovens, centros de reinserção social, lares de idosos, hospitais, estabelecimentos prisionais ou até a própria instituição escolar. A institucionalização das relações sociais continuar a ser uma realidade concreta e de grande importância na vida individual e colectiva; urge, por isso, contrariar determinadas características de funcionamento institucional, como sejam a objectivação ou a inversão dos termos da oferta e da procura [1]. Ou seja: quando se coloca como objectivo o desenvolvimento social, não é possível continuar a tratar os utentes como meros objectos de intervenção, nem manter um funcionamento institucional em que o leque de serviços oferecidos não tem em consideração as reais necessidades dos utentes. Neste ponto, importa reflectir sobre práticas de intervenção que parecem estar enraizadas, nomeadamente no que se refere às competências e qualificações dos técnicos que trabalham directamente com os utentes. Parece-nos evidente que o funcionamento institucional dominante relega para os trabalhadores menos qualificados a interacção permanente com os utentes, como aliás podemos confirmar pelo caso que deu origem a esta reflexão. Neste sentido, importa pensar sobre as consequências que uma prática deste tipo impõe, em especial para a qualidade das relações estabelecidas no seio das instituições. A adopção de práticas de intervenção como esta implicará uma interacção baseada em padrões de senso-comum e nada reflexivos, com efeitos perversos e inviabilizadores da concretização dos objectivos manifestos das instituições. É óbvio que não podemos negar a insuficiência de recursos técnicos e especializados da grande maioria das instituições, nem a carga burocrática que geralmente recai sobre os técnicos, afastando-os do trabalho com os utentes propriamente dito. E não podemos negar igualmente as insuficiências da formação desses mesmos técnicos, insuficiências claramente associadas a um sistema de ensino que não molda os trabalhadores sociais para o trabalho prático, que não fomenta a articulação entre teoria e prática, entre investigação e acção. Falamos, pois, de um sistema de ensino que, se por um lado, tem contribuído para a geração de processos de mobilidade social efectiva, para a aquisição de estatutos sociais mais elevados, por outro lado também está estruturado para reproduzir as relações de classe e, claro, as desigualdades sociais. É nítida a incorporação por parte de uma larga franja dos trabalhadores sociais do padrão dominante das relações e papéis sociais, subtilmente veiculado pela instituição escolar, que se manifesta através da desvalorização do trabalho manual, por “ficar no gabinete no andar de cima”, por não “sujar as mãos”, por “não circular por entre os pobres”, como forma de preservar o estatuto adquirido pela formação escolar. Uma prática deste tipo apenas favorece a reprodução e manutenção de uma ordem social desigualitária e em nada contribui para que as instituições e os trabalhadores sociais se assumam como agentes de desenvolvimento. Parece-nos que é essencialmente à luz deste tipo de questões que devem ser perspectivados os acontecimentos, por vezes com contornos dramáticos, que têm surgido recentemente nos órgãos de comunicação. [*] Educadora Social. [1] Cf. Gaulejac, V. de, Bonetti, M., Fraisse, J., L ‘Ingénierie Sociale, Syros Alternatives, 1989
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