LIBERALIZAÇÃO DOS SERVIÇOS E PRIMADO DA CONCORRÊNCIA
[*]Ilda Figueiredo

1. É conhecida a importância do sector dos serviços quer no plano económico quer na sua vertente social. Na União Europeia calcula-se que, actualmente, com a crescente desindustrialização, cerca de 70% do emprego é no sector serviços, embora se saiba que é fundamental existir um sector industrial forte para que os serviços possam expandir-se, dada a estreita ligação entre ambos. Por outro lado, a evolução de uma sociedade está directamente ligada à forma como assegura a todas as pessoas o acesso a serviços públicos de qualidade nas mais diversas áreas, designadamente, saúde, educação, protecção social, água e saneamento, habitação social, acesso à justiça, cultura, desporto, audio-visual.
Ora, na União Europeia, mesmo depois do duplo NÃO à dita constituição europeia – França e Holanda – a Comissão Europeia manteve uma proposta de directiva sobre a criação do mercado interno dos serviços, conhecida como directiva Bolkestein, o nome do anterior Comissário conservador holandês que a apresentou durante a presidência de Prodi, e que, na verdade, é uma proposta de liberalização da generalidade dos serviços, incluindo os serviços públicos.
Para o grande capital europeu esta é uma das peças fundamentais da chamada Estratégia de Lisboa e, por isso, a Comissão Europeia insistiu na sua manutenção, mesmo sabendo-se que esta proposta teve grande importância na mobilização dos trabalhadores e outros sectores da população para o voto negativo nos referendos em França e na Holanda, o que não deixa de ser sintomático da verdadeira natureza de classe desta dita construção europeia.
2. O processo de debate de uma proposta de directiva é sempre complexo, pois são diversas as fases da sua aprovação, sobretudo quando estamos em co-decisão, como é este caso, o que exige acordo do Parlamento Europeu e do Conselho, pelo que, em geral, há duas leituras, podendo-se ir até às três. Ou, mesmo, não haver acordo, como aconteceu com a proposta de directiva sobre os serviços portuários e sobre a patenteação de software.
Por isso, importa fazer o ponto da situação sobre a proposta desta directiva visando a liberalização dos serviços, a famigerada Bolkestein, depois do importante debate na sessão de Fevereiro do Parlamento Europeu, em Estrasburgo, que culminou na votação de um texto resultante de um mau acordo.
Foi no passado dia 16 de Fevereiro que se consumou a primeira leitura desta proposta, no seguimento de grandes contestações e de uma importante manifestação, em Estrasburgo, no dia do debate, a 14 de Fevereiro.
Este mau acordo entre os deputados do PPE e PSE, incluindo os deputados portugueses do PP, PSD e PS, sobre a proposta de directiva que pretende criar o mercado interno dos serviços, manteve, embora com alguns retoques, a parte fundamental dos objectivos da chamada directiva Bolkestein.
Com o pretexto de criar um mercado de serviços competitivo, querem abolir o que consideram ser obstáculos no mercado interno, com o argumento de que estes impedem as empresas de se expandirem para além das fronteiras nacionais. Querem aquilo que consideram um mercado livre para os grupos económico-financeiros, que imponha aos Estados-membros a eliminação das restrições à prestação de serviços em toda a União Europeia.
3. Embora, agora, na versão revista, não se fale tanto do “princípio do país de origem”, o seu espírito, e mesmo a expressão claramente inscrita, por exemplo, no Considerando 6, onde se fala de “aplicação das regras do país de origem”, continua a influenciar o texto, mantendo uma grande incerteza jurídica, esperando que o Tribunal de Justiça Europeu acabe por decidir nessa base como, aliás, o actual Comissário responsável pela área do mercado interno várias vezes salientou durante o debate.
Num outro artigo, o texto torna, também, claras as intenções quando afirma ser “necessário reconhecer a importância do papel das ordens profissionais, associações profissionais e dos parceiros sociais na regulação das actividades de serviços e na elaboração das regras profissionais, desde que não levantem entraves à concorrência entre os operadores económicos”. Ou seja, o primado da concorrência é que domina todo o texto, mais uma vez, tal como acontecia com a dita constituição europeia, remetendo o social para segundo plano e subordinando-o aos interesses económicos.
Quanto aos serviços públicos, importa registar que não foram retirados do âmbito da aplicação da directiva os serviços de interesse económico geral, ou seja, os serviços que correspondam a uma actividade económica, clarificando, no entanto, que abrange apenas os que estejam abertos à concorrência.
Conseguiram-se excluir alguns serviços da aplicação da possível directiva, mas o seu número foi muito restrito e não corresponde à luta que os trabalhadores e a população desenvolveram contra esta proposta e, lamentavelmente, a maioria das propostas que o meu Grupo da Esquerda Unitária Europeia/Esquerda Verde Nórdica apresentou com esse objectivo, foram rejeitadas.
Em qualquer dos casos, ficou claro que “o serviço transfronteiriço é prestado e executado, sem necessidade de estabelecimento, por um prestador de serviços estabelecido noutro Estado-membro”. O que também fragiliza as micro, pequenas e médias empresas e não apenas os serviços públicos e a generalidade dos consumidores e utentes.
Na área social, lamentavelmente, no último momento, o PSE ainda aceitou mais uma imposição da UNICE, o grande patronato europeu, e retirou da lista dos domínios excluídos do campo de aplicação da directiva, a “política social” e a “ protecção dos consumidores”.
Por isso, um Estado-Membro só pode “impor exigências relativamente ao exercício de uma actividade no sector dos serviços quando aquelas se justificam por razões de manutenção da ordem pública, segurança pública e de protecção do ambiente e da saúde pública. Além disso, não impede os Estados-Membros de aplicarem, em conformidade com o direito comunitário, o respectivo direito interno em matéria de condições de emprego, incluindo as estabelecidas em acordos colectivos.” O que, como se vê, é muito vago e sujeito a grandes imbróglios jurídicos.
Entretanto, as propostas de rejeição da proposta de directiva, que também subscrevemos,  receberam 153 votos, o que demonstra que não são apenas os deputados do nosso Grupo que estão contra esta má proposta. Há outros, designadamente socialistas franceses, belgas e alguns italianos. Aliás, o voto final do texto do acordo teve 213 votos contra e 35 abstenções envolvendo ainda mais socialistas e diversos deputados conservadores, sobretudo dos países de leste.
Mas a luta não acabou aqui. O Presidente da Comissão Europeia já anunciou que, até Abril, irá apresentar uma nova proposta de directiva sobre a liberalização dos serviços tendo em conta a proposta do Parlamento Europeu. Depois, irão decorrer negociações com o Conselho e o Parlamento Europeu sobre os dois textos - o do Parlamento Europeu e a nova proposta da Comissão, de que ainda não conhecemos o conteúdo, mas que imaginamos não ser substancialmente diferente da que existe agora.
Todo o contexto das liberalizações fragiliza os direitos dos trabalhadores assalariados, transforma em concorrentes os trabalhadores independentes e constitui uma inadmissível pressão para diminuir os direitos laborais, acentuando o dumping social, podendo conduzir a uma harmonização por baixo.
Nos próximos meses, vamos continuar a lutar para que estas propostas não se transformem em directiva, tentando clarificar os perigos que envolve o seu conteúdo junto dos trabalhadores e da generalidade da população, pois as suas consequências, mesmo depois destes retoques, continuam a ser muito graves.
4. Pela nossa parte - Grupo da Esquerda Unitária Europeia/Esquerda Verde Nórdica - em que se incluem os deputados comunistas, sempre exigimos que a Comissão retirasse esta famigerada proposta "directiva Bolkestein" e continuamos a propor a sua total rejeição.
A luta vai continuar e esperamos que, com a mobilização dos trabalhadores e das populações na defesa de serviços públicos de qualidade e da garantia de acesso de todos aos direitos humanos fundamentais, seja possível obrigar a Comissão, o Conselho e o Parlamento Europeu a recuarem nas suas propostas inaceitáveis.
Embora difícil, a rejeição da directiva, que ainda é só proposta, é possível na segunda leitura do Parlamento Europeu, como aconteceu há três anos com a proposta sobre os serviços portuários, ou, mais recentemente, com a tentativa de patentear o software.

[*] Economista e deputada do PCP no Parlamento Europeu.