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Rui Pereira [*]
“Viveremos a partir de agora num mundo sem memória onde, como na superfície da água, a imagem afasta definitivamente a imagem” Partamos de um postulado inicial: na impossibilidade de educar os media, resta a tentativa de nos educarmos para os media. É uma ideia que parece sensata, para qualquer um que estude o fenómeno ou que tenha passado um tempo dilatado em redacções, como assalariado do jornalismo. Daí a importância de que as pessoas se juntem para discutir as questões ligadas à reprodução social das informações e dos conhecimentos. Pelo menos de alguns deles. Sejam forças políticas ou sociais, movimentos de qualquer tipo, comissões, sindicatos, cidadãos, seja o que for que isso ainda queira dizer, a desmesura da desproporção que o dispositivo mediático assumiu nas sociedades modernas, e de que há cerca de uma década vamos tendo notícia no nosso país, assim o exige. Trata-se, como bem assinalou Chomsky -não se encontrando, nisso, propriamente sozinho-, de um gesto de autodefesa. Cada vez mais elementar e, por isso, necessário. Das críticas mais radicais, de um Debord ou de um Bourdieu, às observações daquilo a que quase insultuosamente o léxico em voga chamaria um “moderado”, como Karl Popper [1], muitas centenas de autores e ensaístas, médicos ou filósofos, juízes, presidiários, políticos caídos em desgraça e até alguns jornalistas analisaram o fenómeno. Usaram-no, dissecaram-no, estudaram-no. Em suma, a originalidade pode residir, neste assunto, na construção de uma grelha interpretativa por cada um de nós. Um critério que se erga a partir de bases racionais sólidas, para passar a funcionar como um instinto. Um instinto semelhante ao que nos leva a protegermo-nos do fogo ou de um murro, de um tiro ou de uma mentira escabrosa, que identificamos como tal. O espectáculo total Por tudo estar dito e escrito, por vezes numa profusão, ela própria, confusa, parece importante partir de um punhado de ideias capazes de nos situarem, ao invés de nos dispersarem. Porque pensamos com as palavras que temos e estas influem decisivamente nos rumos que o pensamento toma, é importante começar por precisar em termos exactos por que razão parece a designação desenvolvida pelo teórico situacionista francês Guy Debord [2], de “espectáculo integrado”, a que melhor define aquilo que nos habituámos a designar pelo neologismo “mediático”, enquanto mecanismo vital de todo o sistema de relações sócio-políticas, económicas, culturais e da esfera da própria intimidade em que vivemos. A noção referencial no discurso de Debord, a este respeito, radica na definição transversal de espectáculo, ao qual “com frequência prefere-se chamá-lo em vez de espectáculo, o mediático”, como diz. A feérica celebração de cada novo triunfo de uma nova mercadoria técnica e a poderosa variação do poder de controlo social que cada uma dessas vitórias traz consigo (sejam a instantaneidade da comunicação, a acefalização das suas condições de produção e a infantilização das condições da sua recepção, sejam o contínuo que gera no seu exercício permanente ou o respectivo festim do totalmente visível a cada minuto, onde quer que nos encontremos) constituem matéria, antes do mais, ilusória. Prestidigitação lateral. O que efectivamente mudara, entre “A Sociedade do Espectáculo” -1969- e os “Comentários à Sociedade do Espectáculo” -1988- foi a criação não de uma tecnologia mais poderosa e/ou acessível, mas a produção pelo espectacular de toda “uma geração submetida às suas leis”, situa Debord. Em que consistiu tal operação? Ele divide em três idades a estratégia do espectáculo. Primeiro do “espectacular concentrado”, que pautava a modalidade de exercício pelas ditaduras europeias da primeira metade do século XX, para o “espectacular difuso”, baseado já na incitação ao consumo, um típico produto da penetração da influência do modelo norte-americano consumadamente exportado, onde a variedade e possibilidade de escolha entre mercadorias irrelevantemente indistintas simula operacionalmente a “liberdade de escolha”. Entre um e o outro caiu o núcleo, a figura da abelha-mestra em torno da qual trabalha a colmeia, em regime de progressiva alienação. Para, finalmente, se atingir o “espectacular integrado”, dos nossos dias. Aqui, já não apenas desaparece o núcleo do poder, como também a clareza da ideologia do poder. O “espectacular integrado” é uma produção de novo tipo. Que passa, agora, a pautar as condutas sociais, que delimita e estrutura o pensável e constrói, ao configurá-las, as subjectividades aceitáveis. A sua produção é permanente, hegemónica e global. Massiva. Caracteriza-o, ainda, Guy Debord: “o sentido final do espectacular integrado é que ele se integrou na própria realidade à medida que dela falava; e que a reconstruía como falava dela. De modo que esta realidade agora não está perante ele como qualquer coisa estranha. Quando o espectacular era concentrado a maior parte da sociedade periférica escapava-lhe; e quando era difuso, apenas uma diminuta parte; hoje, nada lhe escapa. O espectáculo misturou-se com toda a realidade, irradiando-a. Como se podia prever facilmente em teoria, a experiência prática da realização sem freio das vontades da razão mercantil demonstrou rapidamente e sem excepções que o tornar-se mundo da falsificação era também um tornar-se falsificação do mundo”. A eliminação do ambíguo A ocupação plena, total, dos circuitos legitimados de reprodução social pelos enunciados mediáticos representa, sem dúvida, um feito prodigioso e uma realização de grande alcance na luta do poder pela sua preservação. Nas suas mãos já não está, apenas, a caracterização como verdadeiro ou falso das realidades ou falsidades sobre as quais produz discurso mas, bem melhor, a potência para construir indistintamente realidades que tanto podem ser verdadeiras como falsas. Não importa, porque o “novo estatuto do falso” exime da prova quem detém o poder de enunciar. Em que consiste este novo estatuto do falso? Para Debord, “o simples facto de estar agora sem réplica deu ao falso uma qualidade inteiramente nova. É ao mesmo tempo o verdadeiro que deixou de existir [...] ou [que], no melhor caso, viu-se reduzido a uma hipótese que nunca pode ser demonstrada. O falso sem réplica acabou por fazer desaparecer a opinião pública que, de início, se encontrava incapaz de se fazer ouvir; em seguida de apenas se formar”. Desde que se detém o mecanismo de comando da única verificação social que se faz plenamente e universalmente reconhecer, diz-se o que se quer. O movimento de moinho da demonstração espectacular prova-se simplesmente andando à roda: voltando, repetindo-se, afirmando continuamente sobre o único terreno onde reside doravante aquilo que pode afirmar-se publicamente e fazer-se acreditar pois que é somente disso que todo o mundo será testemunha. “Aquilo de que o espectáculo pode deixar de falar durante três dias é como se não existisse. Pois ele fala, então, de outra coisa qualquer e é isso que, portanto, a partir daí, existe. As consequências práticas, como se vê, são imensas”. Bastante antes da Internet e do ordenador trivializados (em 1988) Debord enunciava os cinco pilares do espectacular e, em particular, do contemporâneo espectacular integrado, que hoje bem reconhecemos: - “a renovação tecnológica incessante; - a fusão económico-estatal; - o segredo generalizado; - o falso sem réplica; - o presente perpétuo”. “O espectáculo organiza com mestria a ignorância sobre o que acontece e, logo em seguida, o esquecimento daquilo que pôde, apesar de tudo, tornar-se conhecido”, concluía. O debate passa a travar-se com lugares comuns que servem para discutir mas que nunca são discutidos, conforme completam, por seu lado, Bourdieu e Wacquant [3]. O controlo absoluto do exprimível, e das modalidades por que pode o exprimível exprimir-se, pauta ainda a possibilidade para todo o jogo táctico de divergência. Um jogo que pode estender-se, em dose convenientemente ponderada para evitar quaisquer consequências indesejadas, até às franjas da dissidência. Na lógica funcional do espectáculo, organizada em torno não da verdade ou da mentira, nem da isenção ou da manipulação, categorias ora tratadas como técnicas, ora como entidades morais, nesta lógica funcional que se estrutura em torno apenas da verosimilhança, o oxigénio judiciosamente administrado à divergência cumpre a função legitimadora do sistema espectacular que adquire, assim, a condição de entidade apresentável como democrática. A margem parece tão folgada que autoriza mesmo uma especial diligência aos funcionários de diversos níveis do sistema espectacular e que consiste em serem eles próprios a ocupar, a espaços e intermitentemente, o lugar da dissidência. O domínio tão total do espectáculo permite ao próprio espectáculo expor as suas misérias de pormenor, desde que o registo permaneça secundário, casuístico, fragmentário, assistémico e não forme nunca um sentido coerente e com suficiente consistência para mobilizar contra si os ânimos que eventualmente consigam sobreviver na sua periferia. Sensivelmente pela mesma altura do escrito de Debord, em 1987, um homem politicamente muito diferente de Debord descrevia o fenómeno em idêntico sentido, embora por outras palavras. Dizia Milan Kundera que os media, “sendo agentes da unificação da história planetária, amplificam e canalizam o processo de redução; distribuem ao mundo inteiro as mesmas simplificações e clichés susceptíveis de serem aceites pela maioria, por todos, pela humanidade inteira. E pouco importa que nos seus diferentes órgãos os diferentes interesses políticos se manifestem. Por detrás desta diferença de superfície reina um espírito comum. Basta folhear os semanários políticos americanos ou europeus, os de esquerda como os de direita, do Time ao Spiegel: possuem todos a mesma visão da vida que se reflecte na mesma ordem segundo a qual foi composto o sumário, nas mesmas rubricas, nas mesmas formas jornalísticas, no mesmo vocabulário e mesmo estilo, nos mesmos gostos artísticos e na mesma hierarquia do que acham importante e do que acham insignificante. Este espírito comum dos mass media dissimulado por detrás da sua diversidade política é o espírito do nosso tempo” [4]. Outro resultado interessante do espectacular integrado, para além desta absorção de todo o gesto crítico que contra ele se esboce, é o de resolver a ambiguidade pueril que ao longo de toda a modernidade tem pautado a relação das pessoas com o campo mediático. Isto é, a própria produção primeiro de realidade e depois de subjectividades, quer dizer, de pessoas, corpos e mentes autorizados a escolherem entre todas as mil e uma maneiras de cozinhar bacalhau, mas cautelosamente mantidas na ignorância de que é possível comerem qualquer outra coisa que não bacalhau. É isso que elimina a importância da velha ambiguidade: “acredite porque vinha no jornal” versus “não acredite porque vem no jornal”. Já não é o jornal que está em causa. Mas, mais simplesmente, as balizas a que se reduziu a importância do acto de acreditar ou duvidar. Ryszard Kapucinsky [5] apontou com muita lucidez como esta transformação penetrou o campo dos media: “Desde que passou a ser considerada como uma mercadoria, a informação deixou de estar submetida aos critérios tradicionais de verificação: - a autenticidade ou o erro. Agora rege-se pelas leis do mercado. Esta evolução é a mais significativa de quantas afectaram o terreno da cultura. [...] O mundo dos media explodiu de tal maneira que começa a viver por si mesmo, como uma entidade auto-suficiente. A guerra interna entre os grupos mediáticos é uma realidade mais intensa do que a do mundo que os rodeia” Um exercício muito simples que permite verificar a indistinção entre ficção e não ficção que marca hoje em dia o discurso espectacular mediático consiste na observação dos anúncios autopromocionais que as estações de televisão fazem à respectiva programação. As mesmas palavras que servem para anunciar uma reportagem especial, servem também para o anúncio de um filme de aventuras, um jogo de futebol ou a entrevista a um personagem em cena, quer se trate de um político, de um actor, de um presidiário, de um futebolista, de uma miss ou de um apresentador do telejornal. A matriz comum a todos eles resume-se à hiperbolização do sentido que a cada um possa ser distribuído a cada momento e, acima disso, ao suspense que cada figura da grelha da programação é capaz de gerar no espectador. Uma palavra, de resto, especialmente significativa: porque espectador é, em primeira instância, aquele que espera. E quem espera, é um velho saber, não age. Nem diz. Espera, apenas. Nem admirável nem novo Insistamos, uma vez mais, em que nada disto é inteiramente novo. “Não há nenhuma razão, bem entendido, para que os novos totalitarismos se pareçam com os antigos. O governo por meio de cacetes e de pelotões de execução, de fomes artificiais, de detenções e deportações em massa não é somente desumano (parece que isso não inquieta muitas pessoas, actualmente); é –pode demonstrar-se– ineficaz. E numa era de técnica avançada a ineficácia é pecado contra o Espírito Santo. Um Estado totalitário verdadeiramente “eficiente” será aquele em que o todo-poderoso comité executivo dos chefes políticos e o seu exército de directores terá o controlo de uma população de escravos que será inútil constranger, pois todos eles terão amor à sua servidão. Fazer que eles a amem, tal será a tarefa, atribuída nos Estados totalitários de hoje aos ministérios de propaganda, aos redactores-chefes dos jornais e aos mestres-escola». Estas palavras não foram escritas por qualquer contestatário mal intencionado. Pertencem a Aldous Huxley e datam do prólogo à edição de 1946 do seu “Admirável Mundo Novo” [6]. As modalidades encontradas para instituir este novo modelo de dominação, no âmbito do espectacular integrado, consistiram na instauração de uma espécie de lógica de contrários, na qual tudo o que parece ser tende, na realidade, a ser o contrário do seu parecer. A essência ideológica do sistema de dominação espectacular, por exemplo, surge revestida de um (efectivo) mergulho fútil generalizado, que projecta a ilusão da não-ideologia. Noutro exemplo possível, a aceleração e incremento da quantidade de informação posta a circular torna-se numa massa informe de ruído entrópico onde o sentido se perde na vertigem da massa contínua de dados incompletos, desierarquizados, fragmentários e aleatoriamente dispersos. Nunca como hoje os jornais foram tão espessos, nem os telejornais tão sucessivos e longos e, contudo, nunca como hoje a indistinção do que imprimem e mostram foi tão (aparentemente) caótica e ininteligível. Por detrás da ruína das Torres Gémeas de Nova Iorque, no tão confabulado 11 de Setembro de 2001, ergueu-se, de súbito, aos olhos do mundo um país de que poucos saberiam fosse o que fosse, o Afeganistão, deixado ele próprio –uma vez mais- em ruínas, mercê dos bombardeamentos norte-americanos postos os quais as câmaras se voltaram para o próximo destino “informativo”sem mais explicações dos que as apresentadas quando, a 7 de Outubro desse mesmo ano, para lá tinham, juntamente com os bombardeiros, apontado as suas miras. Quase dois anos volvidos continuam sem resposta perguntas tão simples quanto as que permitiriam saber em que consistiu, precisamente, a materialidade do conceito de “prova” esgrimido para ligar os afegãos bombardeados aos ataques às metrópoles norte-americanas. Da mesma maneira, desconhece-se a extensão da barbárie provocada num território de um momento para o outro apresentado a biliões de telespectadores do planeta não apenas como um pátria bárbara, senão, também, como uma fonte de barbárie que imperativamente urgia “secar”. Que aconteceu nestes dois últimos dois anos no Afeganistão? Que se passa lá, hoje, para além da construção de um oleoduto que interessava às major petrolíferas e bancárias norte-americanas e que o regime taliban, depois de uma apreciação favorável, ameaçou consistentemente não autorizar? Quantas horas de emissão nos ecrãs do mundo foram dedicadas à assinatura do acordo entre os norte-americanos e os novos senhores no poder em Kabul que, em princípios de Fevereiro de 2002, autorizava, por fim, o início dos trabalhos do tão desejado empreendimento? Que teve isso a ver, ou não, com a decisão de suprimir o “regime fanático das burkas”, substituindo-o por um outro do qual o pouco que se sabe é que as “burkas” continuam envergadas, agora, talvez, por menos mulheres, porque há que descontar as que morreram debaixo das bombas de Outubro a Dezembro de 2001? Os exemplos poderiam suceder-se. Mas, o caso afegão, como o mais recente do Iraque, na primavera de 2003, basearam-se numa das técnicas mais consistentemente elaboradas e reiteradamente aplicadas pela ordem dominante do discurso, comum aos dois como, aliás, a diversos outros casos que os precederam. Trata-se do que, numa linguagem simplificada, pode ser descrito como o sistema da manipulação semântica por via do qual as palavras passam a significar coisas distintas do que até aí significavam ou passam, mesmo, a significar coisa alguma. Nestes dois casos a palavra-chave é “prova”. Na longa história da tradição jurídica (para encontrar uma expressão comum) ocidental, a questão da prova implica uma averiguação prévia e a sua posterior apresentação e discussão em termos publicamente certificáveis. Na ausência de qualquer “dúvida razoável”, no final de todo um longo processo, onde a garantia dos direitos do acusado foi pública e inequivocamente observada e os indícios irrefutavelmente estabelecidos, aí e só aí, pode então ser empregue a palavra “prova” (“O tribunal deu como provado que…”). Ao invés de tudo isso, o que se constata é que a palavra “prova” pode, nestes como noutros exemplos possíveis, ser empregue antes de qualquer destas fases ou, sequer, da intenção de as cumprir. E uma aparente vingança tomou o lugar de uma suposta justiça, em casos sem processo nem trâmites que, votados ao rápido esquecimento, tiveram o condão de banalizar uma brutal e chocante inversão de tudo o que se adquirira como princípio inabalável na marcha da regulação da força e de busca do sentido de verdade e de justiça na história da nossa civilização. Tão interessante quanto tudo isto poder ter acontecido, é a constatação da naturalidade com que foi percebido tal acontecer. Essa naturalização radica numa das premissas básicas do novo ordenamento espectacular: a banalização do chocante. Ricardo Diviani [7] considera esta revalorização da «experiência do choque», um elemento central da cultura por comodidade chamada pós-moderna, que emerge ao mesmo tempo como um elemento estético e uma categoria de percepção. «Se a experiência do choque foi vislumbrada por Benjamin como transformadora da tradição, na actualidade converteu-se em reafirmadora do existente. O choque perdeu os seus impulsos subversivos para passar a integrar as técnicas da indústria cultural» e, cabe acrescentar, comunicacional. A estética do spot e do clip, caracterizada como “esquizofrénica” pela ausência de uma linearidade lógica capaz de pontuar a sua infinita pulverização, constitui uma “estética de fragmentação” e de “brevidade” que percorre cada vez mais avassaladoramente todo o discurso mediático. Uma estética que passou a ser constitutiva de uma certa cultura da imagem em que se baseia hoje, nuclearmente, a produção mediática e à qual o jornalismo também não escapa. Aquilo que pode, já hoje, considerar-se uma tradição crítica nos estudos televisivos, oriunda, sobretudo, dos Estados Unidos, indicia o cumprimento de um papel menos percebido e menos racionalizado, também, nos efeitos da proliferação desta estética de fragmentação. A da construção não apenas de modalidades de percepção, de moldagens de raciocínio, de construções, em suma, de mundividências socialmente uniformizadas mas, também, o de uma arquitectura do próprio corpo. Como tolera um olhar habituado desde a primeira infância ao caleidoscópio da imagem publicitária, onde os planos se sucedem a velocidades de duração inferior a um segundo, como se comporta tal olhar perante a estética pictórica da imagem fílmica no chamado cinema de autor, por exemplo? Não apenas que cultura visual mas, mais profundamente, que redefinição do ver e do olhar está a ser operada pela exposição a esta estética de fragmentação do spot e do clip? Outras abordagens questionam, do ponto de vista da saúde, o efeito dos raios catódicos emanados pelo ecrã, pelo omnipresente monitor. Ao aparelho televisivo juntam-se, agora -pelo menos no seio das famílias de classe média urbana-, os monitores de computadores, as consolas de videojogos, as horas de Internet, a mesma sucessão instantânea de novidade permanente e repetição (já não mecânica, mas digital) incessante. A padronização dos valores e da experiência Uma reflexão sobre a diferença detectada por Debord entre o tempo em que escreveu o seu “A Sociedade do Espectáculo” –final dos anos 60- e os “Comentários Sobre a Sociedade do Espectáculo” –final dos anos 80- conduz directamente ao questionamento das formas de propagação dos valores e de construção daquilo a que já se chamou a “colectivização da individualidade”. Dizia Debord, recorde-se, que a grande diferença entre uma e outra época não consistia no refinamento tecnológico ocorrido ao serviço do espectáculo mas, antes, no facto de, pela primeira vez, toda uma geração ter sido produzida de acordo com as regras desse mesmo espectáculo. É que, a uma estética de fragmentação, de segmentação e de proliferação formal infinita correspondeu, por aparente paradoxo, a gestação de uma prodigiosa uniformidade de conteúdos. A televisão, formalizada enquanto espaço por excelência de diversidade, de montra do diferente, constituiu, algo de transcendente do ponto de vista da criação e difusão de modelos convencionais. Modelos estéticos (indústria das diversas modas), mas também de padrões comportamentais, de ratificação moral e de construção de valores éticos e sociais a seguir por todos. Desde a sua massificação, nos anos 50, foi perceptível o extraordinário poder da nova tecnologia. Nem pelos sonhos mais extravagantes do mais brilhante de entre todos os ditadores que a precederam passara jamais a possibilidade de sentar milhões de pessoas ao mesmo tempo, numa infinitude de lugares, para assistir à mesma coisa. Não apenas “uma” coisa, mas “A” coisa de que no dia seguinte muitos desses milhões falarão entre si. As potencialidades que, desta forma, se abriram para toda a engenharia da dominação rapidamente passaram de impossibilidade onírica, para o terreno da exploração e aplicação práticas. Cujas infinitas possibilidades de divulgação tanto podiam estender-se de uma campanha de vacinação de toda uma população até à publicitação de um novo detergente. Da mobilização persuasiva da população para o alistamento para uma campanha militar, até à organização de hiperacontecimentos partilhados à escala planetária. Da estruturação de um serviço educativo uniforme –aulas por TV, como, em Portugal, tivemos até precisamente ao último mês de Julho de 2003 e durante 40 anos, a Telescola-, até à difusão de valores e modelos de conduta socialmente influentes. Este foi, em substância, o principal papel integrador da televisão. As suas potencialidades no domínio da domesticação social superaram sempre e em muito os seus putativos usos de difusora de conhecimentos problematizadores ou de instigadora de possíveis gestos de dissidência cultural e de transgressão intelectual. Mas, talvez nunca como hoje, a televisão fora essa extraordinária “fábrica de conteúdos” socialmente aceitáveis, directamente dirigidos à formação de um padrão de condutas íntimas, de percepção do “bem” e do “mal”, de tutora das vivências quotidianas por que passam os seus telespectadores, cuja assiduidade de consumo lhes é garantida desde as mais tenras idades. Existem modalidades convencionais de reagir à morte de um familiar próximo, a um sucesso profissional, a um casamento mal sucedido, às primeiras experiências amorosas na adolescência, como existem os “ensinamentos” sobre a forma mais adequada de educar um filho, relativos ao produto da moda no combate às nódoas da roupa ou ao tratamento a dispensar a um ditador no chamado Terceiro Mundo. Como existe um acervo de conhecimentos interiorizado a partir da televisão sobre os momentos que requerem “uma bebida”, uma briga, a comoção das lágrimas ou a sardónica leveza do riso. Os jovens adultos de hoje já puderam aprender tudo isso, todos eles, através da televisão. O denominador comum deste patamar de influência infinitamente mais penetrante e subtil do que a velha propaganda da primeira metade do século 20, consiste na demarcação da fronteira e dos graus entre “Bem” e “Mal”, entre os “Maus” e os “Bons”. A matriz formal de enorme volatilidade de uma gramática publicitária de pulverização regeu todo um código extremamente pobre, reduzido, redutor e rarefeito, que visou (e continua a visar) não apenas a padronização transversal de toda a percepção social, mas (também e sobretudo) a organização da experiência e das condutas legitimadas no mais profundo plano do agir e no sentir individual. Esta padronização virtual dos valores e da experiência humana percorre todos os conteúdos do espectáculo mercantil integrado. Desde as estratégias comunicacionais baseadas nos processos de idiotização social postos em marcha a partir da nova entidade reitora, a televisão, até às orientadas para a fabricação de legitimidade para os projectos políticos e ideológicos mais absurdamente inaceitáveis e, contudo, massivamente apresentados e reiterados como inevitabilidades de uma época em que a História, finalmente, teria acabado. Da colonização à clonização Recordando como Fanon [9] definiu a experiência colonizadora enquanto dispositivo de anulação da personalidade, de roubo da alma do colonizado pelo colonizador, o espectáculo integrado começa, também ele, por ser uma experiência colonizadora para, com o seu desenvolvimento capilar, radial e radicular atingir o estado de experiência (re)fundadora, natal, do que se chamou já o hommo zapiens. O comando da televisão é para muitas crianças o primeiro objecto tecnológico a que acedem, com dois ou três anos de idade, apenas. No plano da colonização, o ex-publicitário Jerry Mander [10] sublinhou, por exemplo, como a materialização televisiva da imagem das personagens literárias mata, literalmente, uma parte importantíssima do exercício de imaginação que preenche o acto de leitura. Ler um livro e, depois, ver a telehistória representa a destruição das imagens construídas pelo leitor no momento em que leu. Progressivamente, a imagem que conservará será a imagem geral, massificada, da televisão (ou do filme) e não a que elaborou mentalmente, por si e para si, quando leu. Mais do que um roubo puro e simples, trata-se de uma operação de substituição de uma acção privada, íntima, pela sua versão massificada e comum a todos os que, tendo ou não lido o livro, passaram a não precisar de imaginar a personagem que lhes foi democraticamente disponibilizada. Convertido em exercício de inoculação, o que poderia entender-se como uma modalidade de distribuição de um dado conhecimento atinge a esfera da capacidade íntima de cada um gerar e gerir o seu próprio imaginário. Uma lógica de invasão da mais íntima zona do ser humano cuja cerebralidade tende, ela própria, por via da osmose televisual permanente, a fundir-se com a de todos os demais submetidos à mesma experiência. A passagem desta experiência de colonização para o grau de uma experiência propriamente de clonização opera-se, portanto, quando, sem nos afastarmos do exemplo de Mander, o acto de imaginação singular proporcionado pela leitura desaparece, ilimitadamente substituído pela mais fácil (a)preensão visual de um imaginário estereotipado, organizado por uma esfera superior que mastiga a pasta de que se nutrirão, até desaparecerem, a singularidade e a insubstituibilidade da experiência íntima. Todos saberemos que a voz de D. Corleone é igual à de Marlon Brando quando fala quase em sussurro, com que gestos (de Madona) sublinha Eva Perón os seus discursos aos argentinos, ou como são os óculos de Harry Potter: passaram, todos eles, para todos nós, a ser inelutavelmente assim e inimaginavelmente de outra maneira qualquer. A partir do momento em que a privacidade do íntimo se integra no jogo socialmente massificado e passa a obedecer às suas regras, por mais subtil e até facilitada e sedutora que seja a operação que transfere uma para a esfera do outro, aquilo de que passa a falar-se é de um processo, mais do que de objectivação, de produção de subjectividades. Da gestação de necessidades inexistentes (exercício publicitário por excelência), ao transplante de imaginários socialmente distribuídos para o lugar privado outrora reservado da imaginação (mediante a telegenização da experiência). Da esfera da sexualidade com a implantação dos valores aceitáveis e das definições validadas do erótico no lugar outrora idiossincrático do desejo (exercício por excelência da pornografia), à construção de legitimações que tornem socialmente natural o política e humanamente injustificável. Aqui, é o caso da correntemente esgrimida inevitabilidade dos cada vez maiores abismos entre riqueza e pobreza ou a obrigatoriedade de os “bons” matarem preventivamente os “maus” (experiência reitora do noticioso). Encontramo-nos em tudo isto perante esferas que fecham um ciclo obsessivo que, no limite, visa, através da experiência de colectivização da esfera íntima, a construção de um determinado modo (correcto) de ver. Um modo que, baseado em extremo no conceito do ter, acaba por estruturar uma maneira comum a todos de ser. Mais do que a construção de um pensamento único, trata-se, insistimos, daquilo que Toni Negri e Michael Hardt teorizaram como uma literal “produção de subjectividade” [11]. O poder é produtivo, não apenas repressor, ensinou-nos, melhor do que nenhum outro, Michel Foucault. E esta é, no fundo e simultaneamente, a primeira trincheira e último reduto da civilização espectacular-mercantil, mesmo quando na sua remota infância ela ainda o não sabia. Numa antecipação imelhorável de tudo isto, Satie resolvia, há muito, abrir o seu livro “Memória de um amnésico” com o exactíssimo paradoxo de “Chamo-me Erik Satie, como toda a gente”. A falsidade da premissa jornalística Ensinam os mais elevados princípios da alta ciência, como as mais elementares deduções do senso comum, que a partir de premissas falsas não se atingem soluções correctas, seja o problema qual for. No caso da construção ideológica do jornalismo isso é particularmente verdadeiro. Historicamente, o espectáculo mediático contemporâneo resulta do cruzamento desigual de duas linhas de força que se encontraram na génese do mesmo fenómeno, o nascimento e desenvolvimento do jornalismo industrial. Essas duas correntes contraditórias são o entendimento e a definição das modalidades pelas quais se autonomizaria, no cenário da modernidade, o chamado campo jornalístico. Em 1856, o correspondente em Washington da agência Associated Press predicaria aquilo que viria a tornar-se na assepsia jornalística por excelência: “O meu trabalho –disse– é comunicar factos. As minhas instruções não me permitem nenhum tipo de comentário sobre os factos, sejam eles quais forem”. Aqui se juntam dois dos dogmas constitutivos da “ideologia de cobertura” do jornalismo profissional na sua idade industrial: a separação entre factos e opiniões e a objectividade no relato jornalístico. Vinte anos antes, porém, Benjamin H. Day fundara o seu New York Sun. Os dois factos parecem nada terem a ver. Mas o jornal de Day, em quatro anos, multiplicara por 15 as suas vendas, fazendo a inveja remota de qualquer responsável televisivo um século depois. A receita fora o rebaixamento do nível das notícias, ao encontro da “satisfação dos gostos, interesses e capacidade de entendimento das camadas sociais menos instruídas”, como, na ocasião, formulara o próprio Benjamin Day. Com ou sem se aperceber, o New York Sun acabava de assentar as bases do sensacionalismo comunicacional, plasmado no que pode chamar-se como a tecno-ideologia do “human interest”, ou seja, de histórias noticiosas que, mais efabuladamente ou menos, procuravam chamar a atenção dos potenciais leitores. Algo que convinha a uma indústria em expansão. Entre 1835 e 1856 –praticamente o período de tempo que separa o sucesso de Day à ascese do correspondente da AP em Washington, nascem as principais agências noticiosas da história do jornalismo: a «Havas» (futura France Presse), a própria «Associated Press», norteamericana, a «Wolf» alemã e a inglesa «Reuters». Entre si possuem a particularidade não apenas de fundarem um novo conceito e género jornalísticos, mas também de procederem à partilha informativa do mundo, nas áreas de influência das respectivas potências. Isto é, desenharam a primeira partilha informativa de carácter imperialista no planeta. No campo específico da imprensa, este é o período em que, dos dois lados do Atlântico, se sedimenta a regra de ouro do novo negócio: “A publicidade deve pagar o jornal”. Este grau superior da definição de Benjamin H. Day, e seu intrínseco complemento, consumaria a articulação entre a produção do jornalismo de massa e o seu controlo pelos grandes potentados económicos. Nos anos seguintes e começo do século XX a história do jornalismo consiste, acima de tudo, na história da indústria jornalística e das suas operações de concentração em tudo similares àquelas que teriam lugar cem anos depois. A retórica do quarto poder e do contrapoder, que parece espreitar da ideologia da objectividade, está já soterrada pela capacidade de condicionamento de uma realidade económica mais importante e decisória: a tutela dos meios de comunicação por quem reunia os recursos para os adquirir e controlar, a sua subordinação à hierarquia da vontade publicitária (os anunciantes e entre estes os grandes anunciantes não pagam um jornal que se lhes oponha) e, por fim, a sua interacção estrategicamente convergente com os poderes de Estado aos quais competia, em última análise, definir as regras do novo jogo. A identificação entre as elites políticas e económicas e a fusão das suas acções em defesa daquilo que a cada momento vão identificando, mais concertadamente ou menos, como sendo os seus interesses, consuma-se naqueles tempos e vem, inalterável na sua substância, até ao presente. As difíceis relações de Rudolph Hearst, o magnate do yellow journalism no princípio do século 20, com a Casa Branca, não apenas imortalizada por Gore Vidal no seu romance “Império”, mas na própria história menos publicitada do jornalismo, são um paradigma que os tempos futuros confirmariam [12]. Quando se tratou da invadir Cuba em 1898, Hearst respondeu ao seu enviado à ilha, o desenhador Frederic Remington, que lhe comunicava estar tudo tranquilo e nada haver a relatar: “-Arranje-me desenhos que eu arranjo-lhe a guerra”. E assim foi. Meio século antes, em 1848, os jornais tinham já desempenhado um papel decisivo na criação de uma atmosfera mental belicista, a favor da invasão e anexação do México. Aqui surgem, pela primeira vez, as penas dos intelectuais em cruzadas propagandísticas favoráveis ao governo. “Sim, é preciso castigar o México severamente!... Que as armas se levantem e que se mostre ao mundo que, ao mesmo tempo que não se perde em discussões, a América sabe esmagar e sabe também expandir as suas fronteiras”, escreveu, nessa altura, o poeta Walt Whitman as páginas do “Eagle”, um jornal de Brooklin [13]. O nascimento da indústria das Relações Públicas, nos 20 e 30 do século passado, com o objectivo de, na expressão de um dos seus patrocinadores, “ensinar aos americanos os factos económicos da vida” e a inter-relação (ainda que formalmente sempre negada) entre esta e o jornalismo, pela afinidade de interesses dos patronos de ambos, consuma a tendência e a herança que dela iria sobreviver e sobrar para os nossos dias. A prova desta regularidade não incidental constitui tanto o trabalho do Comité Creel de propaganda durante a I grande guerra, um dispositivo de propaganda destinado a modelar a opinião do público norte-americano a favor da até aí bem impopular ideia de mergulhar os Estados Unidos no conflito, quanto o trabalho que desempenham ainda hoje as empresas sucessoras deste movimento estratégico, na cobertura dos conflitos da actualidade. “Somente no ano de 1991, e nos Estados Unidos, as 50 primeiras firmas de Relações Públicas tiveram ingressos de 1,7 mil milhões de dólares” por campanhas de imagem de países “como o Koweit, a Turquia, Guatemala, Israel ou Peru”, escreve o jornalista e ensaísta belga Michel Cólon [14]. Os exemplos já conhecidos dos conflitos mais recentes não apenas confirmam a tendência, mas permitem esperar o pior no que respeita ao manejo das representações na nova Era bélica. Crítica e contra-crítica Do percurso anteriormente traçado resulta um aspecto que convém não perder de vista. A saber, a definição, sugerida pela teoria e prática de Benjamin H. Day sobre o gosto do público. Cento e setenta anos depois, a proliferação do telelixo nos ecrãs de televisão do mundo inteiro exerce-se em nome das preferências do público. Os programas são maus, mas “é disso que o público gosta”. A política do quanto pior melhor é aplicada ao espectáculo mediático de uma forma desresponsabilizante. Porque a verdade é que ninguém parece ser responsável por isso. Os programadores e decisores televisivos não vêem, obviamente, televisão. Estão demasiado ocupados a fazerem-na. A isso, e exclusivamente a isso, dedicam uma elevada percentagem do tempo que passam acordados. Os espectadores, por seu lado, não decidem o que se vê ou não se vê na televisão. Esta zona de intervalo torna-se num espaço argumental de gosto duvidoso e fundamento ruinoso. A cultura da indústria mediática, pode demonstrar-se com relativa facilidade, averbou os seus maiores êxitos a partir da intelectualmente paupérrima aposta de Day. E o dado fundamental é que, desde então, a receita não cessou nunca de repetir-se. Cento e cinquenta anos de experiência de sentido único, à qual se juntou como subvariante uma não menos credível nem mais encomiável propaganda de Estado através do espectáculo mediático, promovida pelas ditaduras europeias da primeira metade do século XX. As consequências que tais definição e exercício do trabalho mediático podem ter sobre os seus públicos, progressivamente transformados em alvos publicitários e consumidores, são inimagináveis. Mas, dificilmente podem ser apresentadas com honestidade de outra forma que não a da consubstanciação de uma estrutura de condicionamento que se estende aos próprios produtores assalariados da maquinaria espectacular por eleição. Quando se procuram as fontes e os agentes das práticas de uma conspiração generalizada, que envolveriam sinistros capitalistas imperiais, arrivistas políticos de todo o tipo, jornalistas facínoras e sem escrúpulos dispostos a tudo, delinquentes e comediantes avulsos, concertando-se, todos eles entre si, para construir o espectáculo-integrado que intoxica sociedades inteiras, quando se procede a tal busca, os resultados são, inevitavelmente, infrutíferos. Inevitavelmente porque, de facto, tal conspiração não existe. Quase invariavelmente, a contra-crítica “institucional” a respeito das teorias críticas sobre o espectáculo mediático pretende que estas resultam, precisamente, de terríficas visões conspirativas. Os críticos são, nessa mesma linha, definidos como obscuros intelectuais que têm de si uma auto-imagem de “iluminados”, uma seita messiânica de possuidores da verdade com que pretendem “tocar” as massas estupidificadas pela propaganda contra a qual levantam a sua crítica e a teorizam. Perante a sábia indiferença desse mesmo público que olham como acéfalo e manipulável, os críticos do star-system mediático e das suas misérias construiriam, deste modo, sobre tais massas de espectadores, a imagem (totalmente irreal) de um rebanho subculto, ávido da palavra quase teologicamente distribuída pela teoria crítica. Esta é a linha geral, desenvolvida com maior ou menor requinte consoante a solvência intelectual do respondente. Porém, esse tipo de observação encontra-se respondido por si só. E de há muito. Para não recuarmos mais no tempo, o psicanalista Erich Fromm, no seu esquecido clássico de 1958 “The Sane Society”(traduzido para brasileiro sob o título “Psicanálise da Sociedade Contemporânea”) [15], sublinhava como o ser humano precisa de “uma estrutura de orientação” intelectual tanto quanto do “desenvolvimento da orientação física que se processa nos primeiros anos de vida, quando a criança pode andar sozinha e tocar e manusear coisas sabendo o que elas são”. Esta necessidade de dotar-se de um sistema de orientação intelectual deriva da própria situação do homem: “rodeado de fenómenos enigmáticos e dispondo do uso da razão, tem de procurar entendê-los, tem de incluí-los num contexto que lhe seja compreensível e lhe permita manejá-los nos seus pensamentos”. Ou seja, “acredite ele no poder de um animal totem, num deus da chuva, ou na superioridade do destino da sua raça, fica satisfeita essa necessidade de uma estrutura de orientação”, aponta Fromm, concluindo que “ainda quando a estrutura de orientação de que se vale o homem seja ilusória, ela satisfaz a sua necessidade de um quadro para ele significativo”. Não será necessário acrescentar muitas palavras sobre o papel objectivo da informação mediática na construção destas orientações a tal ponto vitais que Fromm inclui a alusão que lhes faz num capítulo precisamente intitulado “A Situação Humana”. A percepção das realidades alheias e distantes, possibilitada pela maquinaria mediática e tecnológica moderna e contemporânea, é a única chave de entendimento possível de todos os fenómenos que ocorrem fora da esfera física de actuação de cada um de nós. É com essa chave que entendemos o que, por outra via, não podemos sequer saber que existe. Como negar, então, que a projecção de uma realidade sistemática, reiterada e criteriosamente encenada não pode produzir senão olhares orientados, irreais e que podem servir, no imediato, para suprir necessidades de “estrutura de orientação”, mas nunca como ferramentas de razão e objectivação? Quem considera, assim colocadas as coisas, como um rebanho subculto e manipulável todos aqueles milhões de seres humanos submetidos à implacável dominação da propaganda, a não serem, precisamente, aqueles que, exercendo-a e lucrando com ela, apontam aos que se lhe opõem a autoria do crime que cometem? Onde param os jornalistas? Os jornalistas, por seu lado, são pessoas como quaisquer outras, umas mais competentes e sérias, outras menos. Mas nada existe na sua profissão que os transforme automaticamente em delinquentes conspiradores e envenenadores profissionais dos seus leitores e espectadores. Estudos de finais dos anos 50 estabeleceram com muita fiabilidade os mecanismos de integração dos novos jornalistas nas redacções. Ninguém diz ao estagiário que ele tem de escrever a favor deste ou contra aquele. A aprendizagem processa-se por “osmose”, isto é, por meio de uma absorção natural dos princípios e das práticas que, aí, todos seguem “desde sempre” [16]. Alain Accardo [17] chamou-lhe uma “comunidade de inspiração” e não uma conspiração. Rapidamente todos farão aquilo que todos fazem, independentemente de o desejarem ou não, pela elementar razão de ser assim que se fazem as coisas. O pensamento crítico, a análise distanciada e a reflexão ponderada dificilmente cabem no universo inespecífico e vertiginoso que são as condições produtivas do jornalismo, as limitações de tempo e de espaço, o caleidoscópio temático, a competição interna e os demais factores que convertem o trabalho comunicacional num acto de primeiro fazer e depois pensar. Como um instinto inato, é fácil perceber as modalidades de raciocínio e atitude que favorecem ou prejudicam a evolução profissional neste ambiente. No limite, os jornalistas e demais profissionais da informação, formados por uma ideologia antiga, cujas origens e contradições perderam de vista e que, acima de tudo, não lhes trará qualquer benefício reindagar e questionar, modelados por papéis sociais que estavam desenhados antes de si e que todos os demais cumprem, espartilhados pelas rotinas produtivas próprias e pela pressão das hierarquias, exercida sempre que se torna necessária, produzidos, eles próprios, pelas mesmas leis e condições do espectacular-mercantil integrado, são homens e mulheres que, circulando em circuito maioritariamente fechado, dirigindo-se preferencialmente uns aos outros, mantém uma relação, acima de tudo umbilical com o seu meio envolvente, relação que os nutre (em toda a acepção da palavra), fazendo com que bem poucas razões encontrem, enquanto seres humanos e oficiais de uma mesma profissão, para se diferenciarem das circunstâncias que, da mesma maneira que produziram os seus públicos, os produziram a eles também. A precarização dos vínculos laborais, o crescente desemprego, os baixos salários da generalidade dos profissionais (na constelação espectacular apenas brilham algumas estrelas milionariamente pagas e essas não têm interesse em questionar por razões diferentes, mas igualmente evidentes), todos estes factores conduzem, aos poucos, ao nó-górdio do problema: se não passa pela cabeça de ninguém ir a uma sapataria pedir que lhe forneçam um par de sapatos dado, por que razão seria de supor que um jornal haveria de “dar” notícias? Em suma, os jornalistas não estão imunes aos ensinamentos dos “factos económicos da vida”. E muito menos o estão relativamente a esses mesmos factos. Por que razão, então, algo de tão óbvio e fácil de entender, resulta tão difícil de ver explicado e não é, por assim dizer, uma evidência acessível e generalizada a todos, no muito apropriadamente chamado “mercado das ideias”? Pela razão simples de que jornalista algum gosta de nela se rever e, menos ainda, gosta de ser o agente da sua difusão. Segredo de Polichinelo, na verdade, mas segredo crucial. Toda a estratégia do espectáculo cai pela base se não cuidar minuto a minuto, vinte e quatro horas por dia, até ao final dos tempos, da sua própria legitimação. O descrédito da indústria espectacular mediática é a sua morte. Como acontece com o espectáculo da prestidigitação, da magia ou da quiromancia, uma das regras fundamentais do espectáculo mediático, é o segredo em torno do seu modus operandi. Daí que o problema essencial da desconstrução do modelo espectacular consista, com toda a simplicidade e dificuldade que isto comporta, no exercício tão são e honesto quanto possível da actividade por parte dos seus profissionais, é certo, mas sobretudo na aprendizagem que eles possam fazer sobre a regra fundamental que rege a perversão do seu trabalho. E, uma vez concretizada esta –o que está bem longe de acontecer para milhões e milhões de pessoas no mundo do jornalismo e da reprodução social de informação por todo o planeta-, ser capaz de o dizer publicamente. A responsabilidade social do jornalismo e dos jornalistas é, por definição, um sofisma dificilmente sustentável. Mas a responsabilidade social de cada ser humano perante os demais, essa, dificilmente poderá ser alienável sem as correspondentes perdas para os outros e para o próprio. Assumir publicamente a condição natural de assalariado numa indústria e num negócio de alto poder de autocontrolo e profundamente disciplinar, pode parecer óbvio. Mas comporta um elevado risco. Ao dizer que o leite para o seu filho custa exactamente o mesmo a um jornalista do que a uma enfermeira, um guarda prisional, um médico ou um sapateiro, ao dizer uma verdade tão simples e sumária, o jornalista pode ter muito simplesmente arranjado a maneira de ficar sem leite para o seu filho. Este é o problema. Noutro plano de objectivação e para concluir, cabe formular uma outra modalidade de subversão do espectáculo. Este apenas pode modelar realidades distantes, impossíveis de conhecer de outra maneira que não por seu intermédio. Nenhuma televisão tem o poder de truncar uma realidade cognoscível por aquele que a vê, excepto na medida e que o espectador colabore na operação. Atendendo, porém, ao precipício para que o planeta parece estar a ser conduzido pelos seus “novos amos”, como lhes chamou Pierre Bourdieu, como conseguirão todas as televisões juntas convencer o mais simples dos homens de que vive no voltaireano melhor dos mundos, à maneira de Cândido, depois de lhe ter desaparecido do bolso a última moeda e da alma a esperança de a reencontrar?
[*] Rui Pereira é jornalista e professor universitário. Texto elaborado a partir das notas de participação em debate sobre a comunicação social, promovido no Porto, pelo sector intelectual do PCP, Junho de 2003. A redacção do presente texto data de Agosto desse mesmo ano.
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