poesia e... polÍtica?
 

Um convite recente para intervir num conhecido fórum de discussão em torno da literatura de hoje, obrigou-me a glosar um tema um tanto abstruso: «poesi@ilimitada ou Poesia & Lda.». Optei por abordar então alguns tópicos que, a alguns, parecerão muito pouco poéticos. Afigura-se-me que não será tanto assim.

A minha companhia mais fiel, enquanto leitor, talvez seja de facto a poesia. E, relativamente a vários dos meus contemporâneos (falo sobretudo dos da minha geração ou de gerações mais jovens), padeço porventura – e apenas em parte – de um defeito muito… sectário. Esse mesmo defeito que um dia levou um poeta que conheço a referir-se aos livros de um frequentadíssimo romancista português (a frase tornar-se-ia um lugar comum) com esta tirada arrogantemente absurda: «Não li e não gostei.» Ignoro as verdadeiras razões que motivaram tal frase, mas posso imaginá-las. Pela minha parte, devo matizar a questão: li alguns e casos houve em que não gostei, ou deixei de gostar e, por isso, não continuei a ler.

Conquanto sinta a poesia como verdadeira «companhia ilimitada» (tanto é o que tenho ainda para descobrir e ler, sobretudo em idiomas que não o meu), ao encarar a questão de outro ângulo, e pelas razões que acabo de expor e outras porventura mais respeitáveis, direi que a poesia também é «companhia limitada». Desafortunadamente cada vez mais «limitada». Há várias razões para isto.

A expressão «Poesia & Lda.» vem lembrar-me que a poesia escapa cada vez menos às famigeradas leis do mercado, à regra da oferta e da procura, à «intocável» lei da concorrência, constituindo uma espécie de mercadoria, de aparência cada vez mais asséptica e inofensiva. Um pouco de caricatura: a poesia de que falo parece por isso carecer das suas FIL e das suas EXPONOR, necessitada assim de marketing e publicidade, no quadro do sistema capitalista e neo-liberal em que a maioria dos portugueses continua, pelas últimas amostras, a gostar (?) de viver.

Não é essa com certeza a vocação da poesia. Mas como muita daquela de que falo não integra, em boa verdade, a minha «companhia limitada» pessoal, deixo-a passar à minha porta e seguir tranquilamente o seu festivo rumo.

Para apenas falar dos últimos setenta ou oitenta anos do século XX, a minha «companhia limitada» é constituída por alguns poetas que, na sua escrita, foram capazes de, além de tudo o resto, expressar um pouco mais do que meros sobressaltos cívicos. Embora mantivessem como primeiro e indeclinável compromisso aquele que haviam celebrado com a própria poesia enquanto linguagem, muitos desses poetas não quiseram dissociar a sua escrita da pública manifestação desses sobressaltos ou mais do que isso. Lembro aqui Lorca e Neruda, Maïakovski e Brecht, Éluard e René Char, Paul Celan e Guillevic, O’Neill, Carlos de Oliveira e Sophia, Sena, Egito Gonçalves e Eugénio de Andrade. Também pertence a tal estirpe Mário Cesariny – o único, dos que por ora cito, que para nosso contentamento se mantém vivo.

Assim como as ignomínias de outros tempos os não deixaram ficar silenciosos e indiferentes – mesmo sob os olhos bovinos da censura e do que mais se sabe –, fossem alguns destes poetas ainda vivos e decerto continuaríamos a escutar a sua frontal e declarada condenação da barbárie que nos rodeia, quer neste bonito canteiro à beira-mar plantado, quer por esse mundo fora (e aí vão algumas palavras muito banais e nada poéticas, que digo prescindindo de metáforas ou metonímias, mas sem deixar de recorrer à necessária enumeratio: guerra e ocupação de países soberanos, fome, terrorismo, xenofobia e racismo, desemprego, deslocalizações, desmantelamento dos serviços públicos, ataque a direitos sociais, intoxicação da opinião pública, destruição do ambiente…). Uma barbárie em suma à qual, entre nós, a poesia parece cada vez mais indiferente e, consequentemente, um tema ele próprio arredado dos debates das «FIL» e das «EXPONOR» da literatura, que este tempo português nos reservou.

Como se a literatura pouco ou nada tivesse que ver com isso. Alguns dirão: e não tem. E eu direi que Gil Vicente, Camões, Shakespeare, Swift, Büchner, Roque Dalton, Heiner Müller e muitos outros os desmentem. E acrescentarei esta coisa óbvia: que toda a literatura é ideológica e que também o são a História, a Teoria e a Crítica literárias. E lembro até Carlos Drummond de Andrade. Ele que, certo dia, escreveu:

«Não faças versos sobre acontecimentos.
Não há criação nem morte perante a poesia. (…)
Nem me reveles teus sentimentos,
que se prevalecem do equívoco e tentam a longa viagem.
O que pensas e sentes isso ainda não é poesia. (…)
Penetra surdamente no reino das palavras.
Lá estão os poemas que esperam ser escritos.»

(60 Anos de Poesia, antologia org. e introduzida por Arnaldo Saraiva, Lisboa, O Jornal, 1985, p. 60)

Mas ele, Drummond, que isto escreveu, e bem, também quis escrever algo mais no poema «Nosso tempo»:

«O poeta declina
de toda a responsabilidade
na marcha do mundo capitalista
e com suas palavras, intuições, símbolos e outras armas
promete ajudar a destruí-lo
como uma pedreira, uma floresta,
um verme.»

(Ibid., p. 75)

Por isso, quando visito o blog de João Luís Barreto Guimarães (cujo nome, «Poesia & Lda.», dá o mote a este texto e à intervenção que no início referi), mais do que as suas lúcidas e informadas análises e meditações sobre a escrita e os poemas de diversos poetas, não pode deixar de me tocar, neste tempo em que vivemos, uma das histórias que conta e que tomo a liberdade de citar. É sobre a utilidade/inutilidade da poesia e deixo-a à reflexão dos leitores. Escreve João Luís Barreto Guimarães (http://poesiailimitada.blogspot.com/, 15/2/2006) – e perdoe-se-me a longa citação:

«A poesia – eu já o deveria saber – não é tópico aconselhável para trazer como assunto de conversa ao local de trabalho. E eu tinha obrigação de o saber. (...)
Não queria que fosse assim. Mas, no instante em que pronuncio a palavra maldita, muitos são os que imediatamente fogem em pânico, culturalmente assustados, como se tivessem visto um bolseiro de dança faminto ou, variavelmente, fingindo-se ocupados com alguma tarefa realmente importante, dessas que verdadeiramente importam, difíceis e respeitáveis.

Porque a poesia nunca foi coisa séria. A poesia é para quem não tem mais nada que fazer. Por isso, é um absurdo esta minha distracção de trazer poesia a contexto quando travo alguma discussão mais acesa, usando como argumento exemplos daquela que considero uma das artes mais difíceis. É inútil.

E tolice. No outro dia, por exemplo, resolvi tomar partido por alguém mais jovem numa questão burocrática tendo por isso sido duramente criticado. Que não era nada comigo, diziam, que não me dizia respeito, que a coisa não me envolvia. Num acesso de paciência – algo que me vai faltando – e para justificar o meu envolvimento, tentei argumentar com o poema "1938" d[o] [reverendo] Martin Niemöller, um pastor protestante que foi um dos pilares da resistência moral aos nazis:

Primeiro eles vieram pelos judeus
E eu não falei nada –
Porque não era judeu.

Depois vieram pelos comunistas
E eu não falei nada –
Porque não era comunista.

Depois vieram pelos sindicalistas
E eu não falei nada –
Porque não era sindicalista.

Então vieram por mim –
E não havia mais ninguém
Para falar por mim.»
Eu, por mim, recusar-me-ia a aceitar como tal aquela distracção de que o poeta João Luís Barreto Guimarães se acusa. Mas sei que a sua história também é atravessada pela ironia e sublinho a importância dessa paciência que já lhe vai faltando (as palavras são dele). E acrescentaria que cada vez faz mais sentido trazer no bolso e na ponta da língua o poema “1938” de Martin Niemöller. Até porque se a poesia não serve para mudar o mundo, não restam dúvidas de que há poemas e livros de poesia que são capazes de mudar um homem.

[*] Professor universitário, escritor e crítico literário.